terça-feira, 11 de outubro de 2016

JULIÁN AYESTA

 
 
 

A SOMBRA DO DESEJO
  
Chamou-me a atenção, nos últimos tempos, a leitura de algumas referências críticas sobre um autor espanhol que desconhecia: Julián Ayesta. De facto, em diversos “sites” e jornais afirmava-se, de forma mais ou menos categórica, que a sua novela Helena O El Mar Del Verano era uma das “obras mais importantes da narrativa espanhola do pós-guerra”. Ora, eu considero que tenho um razoável conhecimento da literatura contemporânea espanhola, que li algumas das mais importantes histórias da literatura deste período, e não me recordo de alguma vez ter registado alguma referência sobre o autor. Naturalmente, esta situação acicatou-me o interesse em obter mais informações sobre Julián Ayesta e em ler a citada novela.
 
É evidente que estas classificações valem o que valem (a propósito: convém deixar claro que, no quadro dos parâmetros cronológicos da literatura espanhola, a referência “pós-guerra” delimita as décadas imediatas à Guerra Civil) … De qualquer forma, se tivermos em consideração os inúmeros romancistas e novelistas que são reconhecidos, tanto em Espanha como em termos internacionais, como grandes criadores que iniciaram a sua produção ou publicaram algumas das suas obras mais importantes neste período (recordo, a título de exemplo, os nomes de Camilo José Cela, Gonzalo Torrente Ballester, Miguel Delibes, Cármen Laforet, Luís Martin-Santos, Juan Goytisolo, Juan Benet, Rafael Sanchez Ferlosio, Juan Garcia Hortelano e Ignacio Aldecoa), parece-nos estas declarações - em louvor de um autor desconhecido - bem arrojadas…
 
Os dados biográficos mais relevantes do autor permitem-nos, em parte, compreender as razões por que a sua obra caiu num relativo esquecimento ou sofreu uma posterior desvalorização. Julián Ayesta (1919-1996) nasceu em Gijón, no seio de uma família prestigiada localmente, alistou-se muito novo na Falange (ainda antes da Guerra Civil), formou-se em Direito e em Filosofia, e, a nível profissional, ingressou na carreira diplomática, onde permaneceu toda a sua vida. Ao mesmo tempo, nos meios literários, participou em tertúlias e colaborou em algumas revistas, e, por fim, publicou algumas peças de teatro… e a referida novela breve Helena O El Mar Del Verano. Já postumamente, e devido ao trabalho dedicado de um especialista, António Pau, foram publicados mais alguns contos e poemas. Por último, e um pouco para perceber o seu perfil literário, saliente-se que o próprio Julián Ayesta reconheceu a importância estética que dava à obra poética de Vicente Aleixandre (1898-1984), Prémio Nobel da Literatura de 1977 e figura proeminente da chamada “Geração de 27”.
 
Se virmos bem, nesta resenha biográfica estão todos os ingredientes típicos de uma vida exemplar de caballero, bem integrado – ou, pelo menos, acomodado - na sociedade franquista. Ora, é sabido que os historiadores da literatura espanhola do séc. XX sempre desvalorizaram as personalidades e os movimentos literários que não se demarcaram com nitidez, em termos éticos e políticos, do regime de Franco… Talvez esteja aqui um dos motivos por que estes historiadores, durante algumas décadas, passaram ao largo da criação literária de Julián Ayesta.
 
Helena O El Mar Del Verano foi publicada em 1952, tem sido reeditada com regularidade, em particular na última década, e já foi traduzida para várias línguas europeias. A que se deve a “boa fortuna” desta novela que, pelos vistos e achados, foi uma produção solitária de Julián Ayesta?
 
Creio, sem sofisma, que o forte poder de sedução desta narrativa resulta, em primeiro lugar, do seu programa narrativo, todo ele enunciado no título: a praia, o Verão e a descoberta das primeiras emoções eróticas e afectivas. Neste sentido, Helena O El Mar Del Verano traz-nos à lembrança algumas obras com uma ambiência similar, principalmente das literaturas do mundo mediterrânico e… escandinavo, e, muito em particular, certos autores italianos – recordo-me de algumas obras de Cesare Pavese (1908-1950) ou de um autor um pouco esquecido, mas cuja leitura muito me empolgou quando o li há já alguns anos, Pier Antonio Quarantotti Gambini (1910-1965).
 
Esta curta novela é estruturada num tríptico (“En Verano”, “En Inverno”, “En Verano Outra Vez”), sendo a primeira e última parte subdivididas, por sua vez, em três. Saliento este aspecto, porque se percebe que esta estrutura revela que existem dois painéis estivais, luminosos, associados ao prazer e à descoberta, enquadrando um central, sombrio e auto-punitivo, relacionado com o lado fantasmagórico e o fortíssimo “sentimento de pecado” do narrador.
 
Convém agora referir que Helena O El Mar Del Verano tem, como narrador, um jovem no início da sua adolescência e que, portanto, toda a obra se estrutura nesta perspectiva, incluindo, obviamente, as técnicas narrativas utilizadas.   
 
De facto, uma das principais características estilísticas desta obra é a sua dimensão sensorial, em particular na sua componente visual (os adjectivos ligados à luz e à cor são uma constante levada à exaustão), associada a uma enorme coloquialidade e a um uso mais que sistemático das copulativas. Há, por isso, em toda a obra, uma espécie de facilitismo sintáxico, claramente intencional, que nos faz recordar a escrita dos jovens na primeira adolescência. Mas, e é também importante salientar este aspecto, é nesta aparente singeleza estilística que está um outro dos principais elementos sedutores de Helena O El Mar Del Verano.
 
Como vimos, a própria estrutura da obra parece realçar que o tema central da narrativa não é tanto aquilo que está programado no título, mas o tal “sentimento de pecado” que, de forma quase obsessiva, é analisado no painel central. Ao enquadrar esta temática com as descrições dos momentos de júbilo e descoberta da felicidade dos painéis laterais, o autor parece dar a entender que estes momentos têm sempre um substrato sombrio, como se o desejo – que impele para esses momentos de júbilo – obrigatoriamente levasse a uma consumação carnal que, ao acicatar a luxúria, conspurca, degrada e humilha. De facto, é como se esse impulso “desaguasse” num rito vexatório (numa nova crucificação) de Jesus, gerador de uma culpabilização que só volta a diluir-se com o renascer do desejo. No fundo, este painel central, ao mostrar a profunda imbricação (que, na sensibilidade do narrador, atinge por vezes o registo da alucinação) entre sentimento de culpa e de pecado com o sentido da fé e da punição cristã, evidencia como ela tem um papel nevrálgico para a estrutura emocional e sentimental do homem espanhol no período franquista.
 
Por conseguinte, o que o narrador descobre na praia e nos campos que rodeiam a casa estival de família – nos momentos em que vai “reconhecendo” o corpo, por vezes arredio, de Helena – é que a felicidade está sempre conectada com o sentimento de culpa e que esta conexão é – e será sempre – uma manifestação do “pecado original”: é essa a razão profunda porque os momentos amorosos lhe aparecem sempre cobertos de um manto de fluorescente tristeza. Na mente do narrador, esta descoberta torna-se a “chave” iniciática que permite entrar na câmara da idade adulta, levando-o a sentir uma cumplicidade surda, implícita, com a comunidade varonil da família (bem representada no trecho em que o narrador procura, com um enorme entusiasmo, entrosar-se no ritual dos serões de conversa, café e cigarros, após os jantares).
 
Em conclusão, creio que é mais correcto considerar, mesmo reconhecendo a existência de diversos elementos sedutores e envolventes em Helena O El Mar Del Verano (por exemplo, o ritmo frásico encantatório, resultante da sua estrutura repetitiva), que esta novela é apenas uma interessante “preciosidade literária”, bem invulgar, pela sua “leveza” narrativa, numa época que se distinguiu por obras romanescas tensas e crispadas tanto em termos literários como políticos.
 
Publicado na web em 2009.
 
 
Título: Helena O El Mar Del Verano
Autor: Julián Ayesta
Editor: Acantilado
Ano: 2002
87 págs., € 10,00
 
 
 


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