terça-feira, 18 de outubro de 2016

ROBERT COOVER 1

 
 

UMA “CRIATURA” DO FRANKENSTEIN SOCIAL

 

Uma constante incómoda na ficção de Robert Coover relaciona-se com o sentido que motiva a sua própria produção. E tal acontece, não tanto porque ele seja complexo ou de difícil legibilidade, mas porque é de uma linearidade tão óbvia que o leitor fica com a sensação de que o fizeram cair num logro bem urdido. E esta sensação é ainda mais reforçada quando se toma conhecimento que o autor é considerado (com John Barth, Donald Barhelme, Thomas Pynchon e alguns mais) como um dos escritores norte-americanos mais influentes das décadas de sessenta e setenta e um dos rostos do chamado “pós-modernismo” americano.

 
Como sempre sucede, a leitura da novela O Que Aconteceu a Gloomy Gus? provoca também esta sensação de logro; mas é a própria obra que alerta o leitor (e de uma forma muito mais conseguida do que na “short-story” A Criada e o Amo há alguns meses traduzida e editada) para outros sentidos e objectivos.

 
Desde o início que se entende existir um objectivo explícito: tentar caracterizar, através da análise da uma personagem – o futebolista Glommy Gus, morto pela polícia numa manifestação de operários grevistas -, os valores e os mitos que “fazem correr” o homem americano na sua busca de afirmação social.

 
Para isso, Robert Coover resolve elaborar, nesta novela, uma ficção “histórica” e (eventualmente) uma “parábola”. A acção situa-se, no final dos anos trinta, nos meios comunistas e esquerdistas americanos, quando estes optavam entre juntar-se às forças republicanas espanholas na sua luta contra Franco ou, aproveitando-se da situação social provocada pela Grande Depressão, contribuir para agudizar os conflitos de classe contra o poder capitalista americano (e saliente-se que a admirável perícia revelada por Robert Coover na construção deste cenário traz-nos à lembrança o cronista por excelência destes meios e desta época: John dos Passos).

 
E a primeira questão, que a novela levanta, é perceber qual a motivação que levou Robert Coover a preferir este contexto histórico. Talvez que a explicação se encontre no facto de este ser o último período, antes da integração daqueles meios contestatários na administração New Deal e a sua posterior perseguição pelo maccarthysmo, em que a rebelião (parafraseando o filme de Nicholas Ray) tinha uma causa unívoca.

 
Mas, decerto, a razão principal está na facilidade com que assim se definem os contornos do narrador. Este é um escultor judeu, obcecado por Máximo Gorki (cuja obra segue como um breviário e que, curiosamente, aparece aqui irreconhecível), e de quem vai esculpindo, entre estatuetas de futebolistas, um imenso busto, utilizando, como material, desperdícios de metal encontrados em fábricas.

 
É segundo a perpectiva deste narrador que a personagem de Gloomy Gus nos vai ser apresentada. Ansiando por sistema ultrapassar-se e, dessa forma, conseguir o reconhecimento dos outros, Gloomy Gus resolveu abandonar todas as capacidades multifacetadas em que se revelara particularmente apto para se dedicar, através de uma disciplina exaustiva, a superar as inépcias que ocasionaram a sua rejeição social: o futebol e o sexo. A sua formação vai ser assim uma espécie de desconstrução para, através de uma interiorização metódica de um complexo jogo de comportamentos reflexos, aparecer reconstruído como uma marionete programada: é desta forma que Gloomy Gus se torna num futebolista adulado por toda a América e num campeão sexual inultrapassável. O mal vem quando, depois de atingir os píncaros do sucesso e da fama, lhe percebem os mecanismos que desencadeiam a sua acção, levando-o a comportar-se no campo de futebol como se estivesse na alcova, e vice-versa…

 
É então só aqui que se percebe qual o “objectivo implícito” de O Que Aconteceu a Gloomy Gus? e como este tem, no essencial, uma dimensão de “exercício de coerência formal”, em que a soldagem se torna o elemento de construção narrativa determinante. De facto, assim como o narrador esculpe, soldando, de forma minuciosa, desperdícios da produção industrial, também a sua narração é a expressão de uma amálgama de citações (o desperdício da literatura?) de Máximo Gorki, e a sua pespectiva de Gloomy Gus é a de uma soldagem de valores e comportamentos estereotipados que são impostos, em termos sociais, nos Estados Unidos, como paradigmas.

 
É óbvio que Robert Coover deixa em aberto a intenção última desta sua novela: será elaborar uma parábola que evidencie a estrutura caracterial do homem contemporâneo como a de um simples “puzzle” descaraterizado ou deleitar-nos com um soberbo exercício narrativo? O leitor que decida.

 

Publicado no Expresso em 1989.

(Foto do Autor de Stew Milne).

 

Título: O Que Aconteceu A Gloomy Gus?
Autor: Robert Coover
Tradução: Rui Wahnon
Editor: Presença
Ano: 1989
150 págs., esg.

 





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