segunda-feira, 1 de outubro de 2012

HENRY JAMES




CASTRAÇÃO E AUSÊNCIA



Consoante o olhar do leitor vai descobrindo ou não, nos seus romances e novelas, sinais de sintonia com as preocupações do momento, assim a obra de Henry James (1843-1916) tem passado por períodos de entusiasmo e apreço, entrecruzados com outros de relativa penumbra e esquecimento. Contudo, a passagem do tempo tem feito sobressair a importância de uma produção narrativa que, no domínio das literaturas anglo-americanas, conflui direcções romanescas díspares, e na aparência antagónicas, como as de Flaubert e de Proust.

A partir dos anos sessenta, por exemplo, a obra de Henry James sofreu um renovar de atenções. Incorporando uma nova utensilagem de raiz psicanalítica, renasceram então os comentários e as análises que viram nesta obra indícios percursores de uma sensibilidade moderna e de uma escrita afim, como descobriram, sob aquele discurso de uma legibilidade serena, uma outra complexidade que a tornava bem mais fascinante.

Saliente-se, no entanto que a obra de Henry James nunca gozou de uma grande receptividade em Portugal, apesar do esforço da geração presencista que tinha, neste autor, um dos seus favoritos.

As narrativas de Henry James desenrolam-se, na generalidade, nos ambientes de certa aristocracia burguesa, consequência, em grande parte, da origem e do próprio percurso do autor, oriundo da burguesia industrial americana e pertencente a uma família com grandes pretensões intelectuais e literárias (o pai foi um diletante interessado por todos os “temas” culturais e grande apaixonado da obra de Swedenborg, o irmão, William James, filósofo, foi o prestigiado fundador da chamada “corrente pragmatista” e a irmã, Alice James, perturbada por uma estranha doença com clara motivação histérica, escreveu um notável Journal). No entanto, profundamente fascinado com o modo de estar da burguesia europeia – no meio da qual recebeu o melhor da sua formação -, é no Velho Continente que Henry James vai colocar grande parte da acção dos seus romances (a sua paixão pela Europa fez com que se radicasse em Inglaterra a partir de 1876, adquirindo a nacionalidade inglesa, pouco antes da sua morte, em 1915).

É nesse ambiente cosmopolita da aristocracia burguesa, onde só chega o eco distante dos problemas materiais e sociais, que Henry James resolve incidir a sua busca daquilo a que chamou “the real thing”, isto é, não explicitamente um objecto dramático “realista”, mas um pessoal, e inovador, tratamento do “cliché” melodramático.

A exaustão, com que Henry James procura precisar todos os meandros psíquicos em que as personagens se confrontam, leva-o a criar um aparelho estilístico com uma composição frásica densa, sinuosa e de sintaxe complexa, em particular nos últimos romances (por exemplo, em The Ambassadors e The Wings of the Dove), onde quase se dissolve a estrutura dramática. Este aparelho estilístico desenvolve-se como uma substância opaca em redor de um núcleo traumático nunca explicitado, criando uma ambiência finamente ambígua que exige do leitor uma atitude expectante de desvendamento e que o distancia do puro discorrer do melodrama e da situação emocional descrita.

Uma tentativa de dar um sentido global à problemática das personagens dos romances e das novelas de Henry James permite-nos afirmar que elas vivem um destino de impossibilidade, em grande parte resultante do conflito entre os seus projectos sentimentais e afectivos e a convenção, entendendo esta como norma social - reflexa, em última instância, de um determinado estádio da cultura ocidental - da qual o conjunto da obra jamesiana deseja manifestar-se como a consciência objectiva. A aplicação daquilo que o próprio autor chama o “ponto de vista”, isto é, a determinação exaustiva da situação caracterial em que o conflito aparece, faz realçar sempre, por fim, a cultura como uma necessária “malha pérfida” que normaliza relações, criando sofrimento e dor: os quadros de incomunicabilidade e, de certo modo, de perversão, entre americanos, puros e emotivos, e europeus, sofisticados e rígidos, tão comuns na sua obra, são um excelente modelo para revelar esse papel, necessário e nefasto, da cultura.

Por outro lado, entendendo deste modo a problemática da obra de Henry James, e tendo em conta a sua temporalização no séc. XIX, pode compreender-se o papel que nela desempenha as heroínas. O tratamento denso e complexo, com que o autor constrói estas personagens, é a tal ponto nuclear na sua ficção que grande parte do recente renascer de interesse por estes romances é consequente ao modo como foram “olhados” por certas escritoras contemporâneas, preocupadas em definir um discurso narrativo que seja emanação certa do percurso da sensibilidade feminina (recordo, só na literatura francesa, os nomes de Marguerite Duras, Viviane Forrester, Diane de Margerie, Suzanne Prou e Catherine Rihoit).

Henry James sempre cuidou de um sucesso literário que só lhe apareceu no final da vida (se exceptuarmos o relativo sucesso de Daisy Miller em 1876, só a partir de 1899 consegue viver uma situação de desafogo financeiro resultante da actividade literária). Este Calafrio (no original, Turn of the Screw), reeditado agora pela Difel numa tradução de João Gaspar Simões, é considerado, por alguns comentaristas, como uma tentativa desesperada de, através do romance gótico, atingir esse almejado sucesso. Mas, ao mesmo tempo, há quem considere esta curta novela - com a The Best in the Jungle - como a que melhor exprime as capacidades narrativas deste autor, condensando as suas principais constantes, em detrimento dos grandes romances, habitualmente mais realçados.

O seu enredo é simples: uma perceptora provinciana, à procura de colocação, aceita uma proposta de trabalho de um homem de negócios, rico e muito ocupado, que tem a seu cargo a educação de dois sobrinhos, um miúdo e uma miúda; a perceptora desloca-se então para uma herdade isolada onde, com o auxílio de alguns criados, lhes dará a formação básica necessária (note-se que o rapaz, mais velho, já anda no colégio e, portanto, a perceptora só cuidará dele até ao regresso às aulas). No entanto, mal lá chega, toma consciência de um drama: as crianças estão sob a alçada das forças do Mal, duas “aparições” do além-túmulo, a anterior perceptora e um antigo criado, de quem, de um modo difuso, se sabe que mantiveram relações íntimas e ”ilícitas”. Daí em diante, toda a acção da perceptora vai ser, de uma forma obstinada, tentar que as crianças “revelem” os seus contactos com esses seres vindos dos lugares da Morte e, através da confissão, se libertem da sua influência.

Por fim, tudo isto é exposto por um “leitor” que, numa reunião de amigos e um pouco para passar o tempo, resolve ler o testemunho que a perceptora lhe confiou à hora da morte: situação expositiva bem usual na ficção de “aventuras” do final do século XIX e que nos parece bastante significativa, já que esta “presença” de um leitor e de um auditor - que é, implicitamente, o autor – tem, como evidente função, reforçar a “credibilidade” da narrativa face a outros auditores/leitores.

Parece, por esta sinopse, que a acção desta novela ultrapassa o quadro do “realismo psicológico” comum à restante ficção de Henry James. No entanto, nada mais aparente, e isso devido aos méritos narrativos jamesianos que constroem uma obra que, de situação ambígua em situação ambígua, vai correndo nos limites de um metafisicismo ético pretensamente primário, sem tombar nele: colocando a perceptora como narradora destes acontecimentos, nunca se fica com a certeza se as “aparições”  “existiram” ou se são mero produto do imaginário desta, nada aparecendo nas outras eventuais testemunhas que confirme (ou, de certo modo, desminta), de modo “explícito”, a existência das referidas “aparições”. De facto, é Mrs. Grose, a criada, que estabelece a “identificação” das “aparições”, com base na descrição feita pela perceptora, o que permite a esta dar-lhes significado. No entanto, nada prova na narrativa que esta “identificação” não seja produzida por um imaginário resultante de um tipo caracterial idêntico ao da perceptora.

Pode, portanto, afirmar-se que toda a construção novelesca de Calafrio se faz em torno de uma “ausência” constante e obsessiva, como se fosse um novelo de linha montado em redor de um núcleo oco, construção esta que estaria de acordo com o próprio tipo caracterial da narradora.

Filha de pastor anglicano, profundamente crente, provinciana, inexperiente e só, num mundo que condenaria qualquer deslize seu com um ostracismo que se identificaria com a miséria, a perceptora elimina, para conseguir sobreviver, a sexualidade de si mesma, castrando o corpo pelo dever e pelo trabalho: a sua paixão pelo tio das crianças nunca se afirmará e ela vai sublimá-la através do exercício obstinado das suas funções e pelo cumprimento escrupuloso daquilo que lhe prometeu quando aceitou o trabalho - nunca o incomodar com problemas dos sobrinhos. Encarando-a como um sem sentido, como uma força perversa, e de forma bem idêntica ao que se conhece do comportamento do próprio Henry James (revelado nas suas cartas), a perceptora deseja, assim, a “ausência” da sexualidade, construindo em seu redor um modo de estar feito de total dedicação ao trabalho e de (aparente) serenidade.

É a cultura e a informação da perceptora que lhe permitem “entender” essa força perversa (é isso que apenas a distancia de Mrs. Grose), perdendo toda a “inocência” face à realidade. A realidade é, por isso, uma superfície bela, perfeita e pura, mas sempre ameaçada por algo que nela existe e não se vê, que está “ausente”, mas lhe é intrínseca. É o temor dessa presença oculta que faz com que ela não aceite serenamente a beleza do lugar em que vive e a inocência das crianças que educa. E é esse temor que a faz pressentir a presença do Mal antes de ele se revelar na figura dos espectros.

A razão por que a perceptora teme a influência nefasta destes espectros sobre as crianças, não é tanto pela sua condição de emanação da Morte (isso produzir-lhe-ia apenas temor, mas não lhe faria recear pela sua influência), mas porque eles são, em consequência da sua relação condenada, a representação da sexualidade, dessa força, vinda dos lugares da Morte, desagregadora da ordem e do Bem.

Outro aspecto importante é que a influência destes seres não se exerce em conjunto sobre as crianças: pelo contrário, Quint, o criado, “aparece” e inculca maldade em Miles, enquanto Miss Jessel, a antiga perceptora, ”age” sobre Flora. Esta identificação sexual entre “demónio” e vítima permite perceber o motivo mais profundo do temor da perceptora: a crescente afirmação da sexualidade infantil é entendida por ela como uma consequência da pretensa acção dos espectros.

É por isso que Miles, por ser o mais velho, parece estar mais sujeito a estas forças maléficas: é ele que é expulso do colégio, que rouba cartas, que se comporta de forma “maldosa” para provar, face à perceptora, a sua autonomia. Daí que os diálogos que mantém com esta sejam suficientemente ambíguos para parecerem que são motivados tanto pela acção nefasta dos espectros como pela sua própria sexualidade em presença de alguém que, de modo infantil, deseja.

Neste contexto, a “revelação”, que a perceptora tão obsessivamente procura, torna-se um processo típico de culpabilização: ao tentar que as crianças “revelem” aquilo que não conseguem assumir de forma consciente, ela só motiva um esboroamento psíquico e físico resultante da culpabilização. É contra essa castração que as crianças lutam, acusando o “verdadeiro demónio” que, a seus olhos, se torna a perceptora.

Quando, como tentativa final, a perceptora ameaça Miles de mandar chamar o tio, como forma de o forçar a “revelar-se”, o que ela apela é a um combate fálico em que a Ordem esmague essa sexualidade nascente, criando em Miles uma forma de estar, assente na Castração e na Ausência, idêntica à sua. Mas isso não dará origem ao aparecimento de um novo espectro, o tio, perante si, que, por sua vez, irá abalar e por em perigo a sua forma de estar, tão dolorosamente conseguida? É evidente que este é o “desejo” mais “inconsciente” da perceptora e que ela não pode admitir, colocando-se, por isso, à beira do abismo da loucura…


Publicado no JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias em 1983



Título: Calafrio
Autor: Henry James
Tradução: João Gaspar Simões
Editora: Difel
Ano: 1983
165 págs., € 9,09



Sem comentários: