sexta-feira, 19 de outubro de 2012

JEAN RHYS



AS INTENSIDADES INSULARES



Um dos aspectos mais salientes e invulgares da literatura inglesa é a importância que têm nela os autores do sexo feminino. Um peso e uma dimensão tão grandes, que levou já alguém a afirmar que esses autores são o principal fio condutor da literatura britânica, sendo impossível efectuar qualquer análise desta onde os seus nomes fossem omitidos, visto que a desfigurava de tal modo que a transformava num amontoado desconexo de obras.

É evidente que, de certo forma, esta afirmação é legítima para qualquer literatura. Mas em nenhuma outra é tão certeira como na literatura inglesa. E creio que não vale a pena esboçar aqui uma lista exaustiva de nomes de autores do sexo feminino, tantos já clássicos são e tantos aparecem em cada nova geração.

Por muito louvável que tal situação seja, é também inegável que provoca alguma estranheza. Será resultante de certas particularidades da sociedade britânica? Mas quais? Será consequência de uma certa compreensão do fenómeno literário? Mas então como caracterizá-la? Ou será, pelo contrário, motivada pela insularidade daquela literatura e daquela sociedade?

Vem isto a propósito do lançamento em Portugal, numa notável tradução de José Carlos Costa Marques, do romance de Jean Rhys, Wide Sargasso Sea, uma obra fulgurante que transformou a sua autora num caso muito especial dentro da literatura inglesa.

Jean Rhys nasceu, em 1890, nas Antilhas inglesas, mas ainda adolescente veio para Inglaterra, onde iniciou uma vida errante e acidentada que a fez viver nas principais capitais europeias. Em 1927, publica a sua primeira obra, The Left Bank, um conjunto de “histórias” que subtitulou de “esboços e estudos do Paris boémio dos nossos dias”, e, até ao final dos anos trinta, edita mais quatro romances (Quartet, After Leaving Mr. Makenzie, Voyage In The Dark e Good Morning, Midnight). No entanto, talvez devido a uma desadequada sintonia entre a sensibilidade da autora, bem manifesta na sua obra, e a sociedade britânica da altura, ninguém, à excepção de Ford Madox Ford, reconhece particulares méritos literários a Jean Rhys e, paralelamente, os seus livros tornam-se um verdadeiro fiasco de vendas.

Cansada de tentar furar uma barreira intransponível, Jean Rhys remete-se a um total silêncio literário. Depois de um longo período muito atribulado afectivamente (a autora vai então no seu terceiro casamento), resolve recolher-se na Cornualha, resignada a viver de forma humilde e anónima.

Até aqui, a vida de Jean Rhys parece um exemplo típico do percurso de um autor “falhado”. Mas eis que, de repente, no início da década de sessenta, se dá o seu verdadeiro “renascimento”: quando já há muito tinham desaparecido todas as suas obras das livrarias, uma actriz, Selma Vaz Dias, pertencente a um círculo reduzidíssimo de cultores e apreciadores da autora, resolve preparar para a BBC uma adaptação radiofónica de Good Morning, Midnight. Procura então saber se Jean Rhys ainda é viva e onde se encontra… e é através de um anúncio no jornal que a descobre. Mal a sua descoberta se torna pública, a autora recebe algumas cartas a acusá-la de farsante e de tentar usurpar um nome literário, aproveitando-se do facto de ser um pseudónimo, o que leva Jean Rhys a confessar com alguma ironia melancólica: “Tenho a impressão que é uma falta de tacto da minha parte ainda estar viva”.

Resolve nessa altura repegar nalguns papéis escritos que tinha abandonado no fundo das gavetas. E no final da vida, enfrentando a sua fragilidade física e a morte do marido, vai reescrevendo esses papéis até conseguir produzir mais alguns contos e este soberbo romance, Wide Sargasso Sea, que é publicado quando já tem 76 anos. Vem, por fim, a glória literária, os meios financeiros que até aí nunca tivera, morrendo em 1979, quando todos os círculos literários internacionais a reconhecem como uma das mais importantes autoras inglesas deste século.

Em Vasto Mar de Sargaços, Jean Rhys retoma uma personagem de Jane Eyre de Charlotte Brontë - a esposa louca de Mr. Rochester, Antoniette Mason, que vive encerrada no sótão da sua casa de Thornfield Hall - e descreve todo o seu percurso até ao início da situação narrada no romance do séc. XIX, dando, desse modo, uma interpretação ao comportamento daquela personagem. Situando a acção de Vasto Mar de Sargaços por volta de 1830, a autora vai incorporar nessa personagem a vivência da sua própria infância nas Antilhas, e a contenção, que semelhante artifício determina, retira desta obra qualquer cariz de autobiografismo melodramático.

Antoinette é crioula, oriunda de uma família que, possuindo escravos, ficou quase na total miséria, aquando da emancipação da escravatura. Toda a sua infância vai ser assim marcada por três factores: um isolamento selvagem, resultante de dois racismos que a deixam insituável (por um lado, o racismo dos negros, por outro, o racismo dos britânicos que a consideram ou uma falsa branca ou uma falsa negra, conforme o “olhar”); a ansiedade da sua mãe viúva que, impelida pela sua juventude, espera, no mais intenso desespero, voltar a “nascer” (daí o repúdio da filha onde ela reconhece o seu próprio “crioulismo”, as frenéticas fugas a cavalo, fazendo esvoaçar entre os negros a sua roupa andrajosa, e, por fim, o recolhimento e o mutismo, deixando as ervas crescerem nos caminhos que cercam a casa); e o convívio com a ama jamaicana Christophine, conhecedora das obscuras magias que sabem dominar e fazer mover “o outro lado”, esse fantasmático “outro lado” que pode agir sobre o destino de todos, redimindo-o ou destroçando-o.

Toda a infância de Antoinette fica assombrada pelo sentimento de que a vida é “insuportável”. Insuportável, porque, dada a sua situação de crioula, todos os outros a repudiam, obrigando-a a afastar-se para o meio de uma natureza, cuja florescência magnífica só torna presente o excesso da morte; e insuportável ainda, porque a História conduz a sua vida sem possibilidade de lhe resistir (a serenidade, que Antoinette vagamente se lembra, dos momentos em que o seu pai era vivo, foi substituída pela permanente coexistência do sono com o medo). Incapaz de ser outra coisa, o corpo resigna-se a ser um receptáculo vibrátil do sentir, provocando um desejo imenso de imobilismo e morte como forma de eliminar essa intensidade “insuportável”.

Há, portanto, em Vasto Mar de Sargaços, uma obsessiva consciência de uma ideia primordial: a de que toda a “intensidade” do sentir se concentra no corpo, transformando-o numa ilha isolada no mar da vida. Não só porque essa intensidade é, de certo modo, inexprimível, mas porque qualquer tentativa de expressão, por alheamento ou hostilidade do outro, se pode tornar mortal: é esta não só a causa da loucura da mãe de Antoinette (resultante do seu segundo marido não compreender o perigo que rodeava a sua casa e a sua família), mas também da própria Antoinette (provocada pela descoberta da inevitabilidade da falta de amor do marido a que se encontra, sem alternativa, presa).

Percebe-se assim que esse inlocalizável medo que rodeia a existência das personagens principais de Vasto Mar de Sargaços, e lhes cristaliza essa intensidade do sentir, é, no fundo, a consciência indecifrável, mas prenunciatória, de um incontornável final: a loucura como única “deriva” possível, como única forma de “deslizar” pelo mar que as cerca. A loucura transforma-se no meio “suportável” de esperar pela morte.

Mas há também neste romance uma dimensão fortemente catártica que, de certo modo, “ilude” a sua tonalidade desesperada: não é por acaso que Vasto Mar de Sargaços está organizado em três partes, tendo a primeira e a terceira um narrador feminino, redigidas numa escrita obsessiva e alucinada, e rodeando, portanto, uma segunda parte, com um narrador masculino, e dominada por um olhar que, no essencial, julga...

Contudo, a maior qualidade deste romance está na excepcional combinação do estilo com a matéria narrada. A contenção, quase obscena de excesso, com que tudo é descrito, a repetição constante de situações e imagens como se estas fossem presenças paralisantes da memória, a “objectividade glacial” (como refere Francis Wyndham na brilhante análise que introduz esta edição) com que Jean Rhys visualiza, de um modo dramático, as situações (a descrição do incêndio da fazenda de Colibri, com o papagaio, o animal preferido da mãe de Antoinette, de asas aparadas, a procurar voar completamente em chamas; a descoberta do cavalo da mãe, morto, “com os olhos negros de moscas”; ou a chegada a Massacre, o ermo hostil onde Antoinette e o noivo desembarcaram na Dominica, são imagens absolutamente inesquecíveis) dão-lhe qualidades estilísticas que nos lembra algumas das mais recentes obras de Marguerite Duras e que nos permitem classificar Vasto Mar de Sargaços como uma indescutível obra-prima.

Publicado no Expresso em 1988.


Título: Vasto Mar de Sargaços
Autor: Jean Rhys
Tradutor: José Carlos Costa Marques
Editor: Difel
Ano: 1988
169 págs., esg.





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