domingo, 28 de outubro de 2012

PAUL AUSTER




VIDA DE CÃO



Paul Auster é um dos poucos autores norte-americanos que obteve um tratamento privilegiado em Portugal: todos os seus livros de prosa - e já não são tão poucos quanto isso - estão traduzidos e editados no nosso país. Tal se deve ao inquestionável mérito literário do autor, mas, como é óbvio, não é esta a principal razão para este facto. O sucesso entre os leitores portugueses de Paul Auster deve-se, antes do mais, a uma certa consonância de sensibilidade. Na verdade, é já bem conhecido que a formação literária de Paul Auster foi feita em boa parte na Europa e em redor dos seus autores, em particular, dos franceses (deve ser salientado o seu trabalho de tradutor, principalmente de poetas contemporâneos franceses - “experiência de formação” que é muito invulgar entre os actuais escritores norte-americanos), como é também bem sabido o peso da francofilia na cultura portuguesa. A importância desta formação é tão notória na obra de Paul Auster que hoje é já consensual afirmar, em especial nos E.U.A., que este escritor é o mais destacado autor “europeu” da literatura norte-americana.

Não admira, por isso, que o sucesso de Paul Auster na Europa tenha sido mais rápido do que no seu país de origem. Efectivamente, pode dizer-se que Paul Auster só deixou de ser um autor apreciado por uma minoria muito restrita nos E.U.A. a partir da realização de Smoke e do relativo sucesso que este filme, pelo seu carácter inovador no quadro do “mainstream” da produção cinematográfica americana, aí obteve. Foi a partir desse momento que os leitores norte-americanos começaram a “descobrir” a anterior obra deste autor e que se lhe abriram de par em par as portas editoriais e da produção cultural em geral.

Percebe-se, assim, os motivos porque foi, passados poucos meses da sua publicação original, traduzido e editado no nosso país o seu último romance, Timbuktu, mesmo sendo do conhecimento público que este não foi consensualmente - como até aqui tinha sucedido com a anterior obra deste autor - bem recebido pela crítica, nem tenha conseguido atingir índices de vendas excepcionais. De facto, desta vez, Paul Auster conseguiu deixar perplexos os apreciadores da sua obra: este romance, tendo em conta as suas anteriores narrativas, é, de certo modo, imprevisível e, por isso, desconcertante.

De imediato, o leitor estranha que a personagem principal de Timbuktu seja um cão. E um banal rafeiro, cuja única peculiaridade é a de ser o companheiro inseparável de um poeta vagabundo, mais ou menos beat, que procura, nas ruas de uma qualquer cidade norte-americana, os sentidos possíveis da sua existência - e bem similar a tantas figuras que, ainda hoje, arrastam, por Nova Iorque ou por S. Francisco, o rasto fantasmagórico do seu esplendor juvenil dos anos cinquenta e sessenta.

Porém, mal se aceite as regras do jogo, o leitor compreende que a aposta narrativa de Paul Auster tem riscos demasiado elevados. Antes do mais, porque existe uma intencionalidade bem delineada: o que se procura não é construir uma fábula de legibilidade imediata, mas tornar credível, em termos romanescos, a história de um cão. Quer isto dizer, que se pretende transpor para a personagem principal de Timbuktu uma certa “humanidade” possível de se aceitar num animal, de molde a que o leitor - humano, “demasiado” humano - possa entender a perspectiva de um cão. No fundo, Paul Auster está, numa estratégia narrativa que não anda muito longe da tradição romanesca norte-americana (ao contrário do que seria previsível nele), a debruçar-se sobre o núcleo temático comum a alguns autores determinantes da literatura contemporânea: a fronteira entre a animalidade e a humanidade ou, por outras palavras, o que existe de “silenciosamente” animal no humano e, ao mesmo tempo, de “sensitivamente” humano no animal.

Ora, é esta aposta narrativa que, de certo modo, falha neste romance: o leitor - mesmo esforçando-se por assumir a maior empatia possível pela obra e pelo autor - nunca consegue aceitar como muito credível a personagem de Mr. Bones (o nome do referido cão) e procura, quase por impulso, descobrir, na sua história, a fábula que o ajude a compreender a vida dos homens no mundo de hoje.

Não estará Paul Auster, com esta aposta, a “esticar” demasiado os limites estéticos do romance, ao introduzir uma personagem canina nos padrões miméticos do romanesco convencional? Não será inevitável que o leitor encare Mr. Bones como humano em excesso para ser cão? De facto, assim sucede; e, a maior prova desta situação, é que o próprio autor não consegue, ao longo do romance, manter um registo coerente com a sua intenção inicial. Ao longo de Timbuktu, Paul Auster sente-se, por vezes, obrigado, na reflexão que a experiência de vida provoca em Mr. Bones, a “humanizá-lo” quase por completo: ao longo de muitas páginas, o leitor só “percebe” na personagem principal uma figura humana metamorfoseada em cão.

Por isso, quer Paul Auster o pretenda ou não, Mr. Bones não passa de uma figura de fábula sobre a condição humana. E, neste sentido, Timbuktu revela-se como uma obra particularmente pessimista. Uma visão pessimista que emana não somente do triste percurso de Mr. Bones, mas, muito em especial, de um princípio subjacente à reflexão que atravessa todo o romance: a condição humana é ontologicamente dependente e só subsiste num quadro de dependência, seja ele de que tipo for.

Timbuktu é, de facto, um romance falhado. Porém, afirmar este facto, não determina o desinteresse total do leitor por esta obra. Existe, como em qualquer outra obra de Paul Auster, páginas de uma beleza pungente e de uma particular argúcia sobre o estatuto humano nos dias de hoje e, em particular, sobre essa linha de demarcação, mais presente do que é costume imaginar, em que conflui o animal com o humano.


Publicado no Público em 2000.



Título: Timbuktu
Autor: Paul Auster
Tradução: José Vieira de Lima
Editor: Edições Asa
Ano: 2000
159 págs., € 13,50





Sem comentários: