quarta-feira, 23 de setembro de 2015

PATRICK SÜSKIND

 
 
 
 
 

A ARTE COMO BLOQUEIO SUÍCIDA

 

O autor alemão Patrick Süskind tornou-se um dos mais recentes mitos do mundo literário, não só pelo enorme sucesso editorial que obteve, em toda a Europa, com o seu romance O Perfume, mas também pelo seu comportamento misantropo e avesso à comunicação social. Naturalmente, o destino das suas obras transformou-se de um modo radical, e daí que O Contrabaixo, anterior à publicação daquele romance, fosse depois editado em diversos países, e que a encenação deste monólogo dramático, como refere Anabela Mendes, a tradutora e apresentadora da versão portuguesa, resultasse num expressivo êxito teatral nas duas Alemanhas.

 
O Contrabaixo é unicamente constituído pela alocução de um contrabaixista, feita no seu quarto a um público imaginário, e por algumas indicações cénicas sobre a acção da personagem ou sobre a música que ouve ou toca. Nessa alocução, que se inicia por um elogio às virtualidades musicais do seu instrumento, o que se vai espelhar, é a intensa solidão do contrabaixista por se dedicar à execução de um instrumento tão grande e produtor de tão estranhas sonoridades. E, além disso, como a sua execução o obriga a um esforço físico que lhe deforma o corpo, como os seus hábitos se tiveram de condicionar àquela presença imensa e como os seus desejos ficaram bloqueados com as notas de um instrumento que afasta automaticamente a musicalidade dos outros para o seu polo oposto.

 
O contrabaixista vive, por isso, com o seu instrumento, uma relação de exclusividade, obcecante e frustrante, porque, dadas as características do contrabaixo (e também por ser terceiro nível de uma orquestra nacional), nunca poderá ter o reconhecimento público pelo seu esforço, nem receberá um olhar empolgado pela sua música. Percebemos, assim, que todo o enaltecimento minucioso do músico no início do monólogo, sobre a importância do contrabaixo na história da música, não passa de uma forma de tentar escamotear, perante si e os outros, a esmagadora depressão que a sua existência lhe provoca por estar na dependência daquele instrumento. E o monólogo atinge a tonalidade do desespero, quando o contrabaixista confessa a sua paixão por uma soprano de quem sabe que não se poderá aproximar, visto que, em consequência da posição subalterna do seu instrumento na orquestra, ela nunca reparará nele e sentir-se-á sempre solicitada por outros músicos, tocando instrumentos de musicalidade mais fascinante.

 
A relação do contrabaixista com o seu instrumento é, por isso, dúplice de amor e ódio: tanto a sua violência como o seu erotismo têm que se resolver com o contrabaixo. E, dada a estabilidade que lhe concede o seu cargo de membro vitalício da orquestra e da impossibilidade de se dedicar a outra actividade, o contrabaixista percebe que a sua relação é definitiva e angustiantemente suicida.

 
Este texto de Patrick Süskind é, por isso, uma parábola sobre as dificuldades comunicantes de quem se dedica a um instrumento de comunicação que, impondo uma exigente e constante presença, lhe envolve a vida e a transforma num inferno de solidão. No fundo, a arte aparece, não tanto como um veículo de comunicação e de busca de afecto, mas, pelo contrário, como uma redoma inibidora, dado o seu carácter absorvente e radicalmente existencial.

 
Convém, por fim, referir, para melhor o situar, que existem notórias semelhanças, pela sua temática e pelo seu carácter de monólogo dramático, entre O Contrabaixo e algumas obras de Samuel Beckett e Thomas Bernhard, sem, contudo, atingir a concisão estilística e o rigor verbal da produção destes autores.

 
Saliente-se ainda a boa qualidade da transcrição para português feita por Anabela Mendes.

 

 
Publicado no Expresso em 1987.

 
(Foto do Autor de Philipp Keel)
 

Título: O Contrabaixo
Autor: Patrick Süskind
Editor: Difel
Tradutor: Anabela Mendes
Ano: 1987
66 págs., esg.
 
 

 
 


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