quinta-feira, 24 de setembro de 2015

RENÉ CREVEL


 
 
 
UM SURREALISTA (POUCO) EXEMPLAR
 
 Um conhecimento, mesmo que superficial, dos princípios estéticos e éticos do surrealismo, tal como foram formulados nos seus “Manifestos” e pelos grupos iniciais de André Breton, permite compreender como eram antagónicos ao modelo clássico do romance, arquitectado no séc. XIX, e como refutavam qualquer tipo de narrativa convencional. Basta recordar a importância dada à “escrita automática”, como veículo de manifestação do inconsciente e de libertação individual, para perceber a que ponto se tornava difícil conciliar esta sensibilidade estética com as formas estruturadas (conto, novela ou romance) da narrativa. É natural, por isso, que, em forma de balanço simples, a narrativa apareça, em comparação com a poesia ou com as chamadas artes plásticas, como uma expressão artística com menor projecção no quadro da produção surrealista (mesmo tendo em consideração que alguns textos fundamentais de Breton, Soupault e Aragon tenham sido redigidos em prosa).
 
Porém, hoje é inquestionável que foi esta refutação e a necessidade de conceber um modelo narrativo alternativo que originaram a introdução de elementos que tornaram a narrativa muito mais maleável e adequada à sensibilidade contemporânea (recordo, por exemplo, a introdução do absurdo e do “non-sense” ou a exaustiva utilização da metáfora e da metonímia como meios de reforçar a intensidade poética da narrativa). E, se, actualmente, parece evidente o papel desempenhado pelo surrealismo para revolucionar os modelos da narrativa, e se, por outro lado, ao longo do séc. XX, não poucos escritores reconheceram a importância do seu legado estético, numa primeira fase, a relação entre surrealistas e romancistas assentou bastante em acusações mútuas, desconfiança e “partis pris”.
 
Nem que fosse pela circunstância histórica de ser um dos poucos surrealistas que utilizou quase exclusivamente o romance como expressão artística, a figura de René Crevel merece e deve ser lembrada. Mas, para além disso, pela sua atitude de afrontamento das convenções burguesas e pela coragem interior com que assumiu e procurou superar as contradições ideológicas da sua geração, foi um caso invulgar de coerência revolucionária (no sentido mais genuíno - e surrealista - do termo). A sua vida breve e acidentada e, até mesmo, a sua morte foram, para lá das motivações subjectivas e da doença, o resultado dramático de uma busca incessante por viver de acordo com uma nova ética que libertasse o homem e respeitasse os seus desejos e natureza.
 
René Crevel nasceu, com o século XX, em Paris e teve uma adolescência relativamente desafogada. Em 1920, ao entrar na Sorbonne, conhece alguns colegas que se vão tornar figuras importantes do meio literário francês (Marcel Arland, Georges Limbour, mas, muito em especial, o futuro dramaturgo Roger Vitrac, seu parceiro no movimento surrealista). Só no ano seguinte é que Crevel conhece os dadaistas, em particular, Tristan Tzara, de quem se tornou grande amigo, Louis Aragon e André Breton. A partir desse momento, passa a participar no movimento surrealista, colaborando nas suas revistas e tomando parte activa nas inúmeras querelas que, de um modo constante, dividiram os seus membros. Em 1924, publica o seu primeiro livro (Détours) e, nos anos seguintes desta década, edita à média de uma obra por ano. Porém, as suas relações com o grupo surrealista não são fáceis: primeiro, porque manifesta, em termos públicos, as suas dúvidas em relação à importância da “escrita automática”; segundo, porque são conhecidas as suas relações homossexuais (que André Breton condena expressamente em 1927). Em 1926 e 27, conhece e convive com Gertrud Stein e H. G. Wells (por ocasião de uma viagem a Inglaterra, onde se fascina pela obra das irmãs Brontë, sobre as quais escreveu), que o estimulam a continuar a sua obra romanesca.
 
Entretanto, é-lhe diagnosticado uma tuberculose pulmonar. Começa a passar algumas temporadas em sanatórios e a sua saúde nunca mais se irá recompor. No entanto, uma enorme ansiedade de viver leva-o a não ficar parado, desdobrando-se em projectos e numa vida amorosa e social frenética. Projecta ir a Marrocos, mas desloca-se para Berlim, onde inicia uma relação amorosa com uma alemã, Théa Sternheim (e com quem, mais tarde, iniciará uma relação a três, uma vez que ambos se apaixonam por um pintor austríaco, Rudolf Ripper). 
 
Em 1929, os surrealistas, a pedido de André Breton, resolvem tomar posição sobre o exílio de Léon Trotsky. René Crevel subscreve a posição dos surrealistas e, a partir deste momento, ainda se empenha mais nas suas actividades (participa em reuniões, dirige revistas, com Paul Éluard e René Char, redige artigos sobre psicanálise e sobre Salvador Dali). Em 1932, em conjunto com Breton, Éluard e Char, adere à AEAR (Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários), organização intelectual próxima do PCF. Porém, ao participar em reuniões e assembleias, desilude-se com a falta de abertura da organização. No ano seguinte, por ocasião de uma posição crítica relativamente à U.R.S.S., desencadeia-se a ruptura entre os surrealistas e os comunistas e Crevel, em parte também por razões amorosas e de saúde, não só se afasta da organização pró-comunista como dos surrealistas. Mas, ao mesmo tempo, tenta sensibilizar Tzara e Char para a necessidade do movimento surrealista se empenhar mais em termos políticos.
 
Em 1935, Crevel afasta-se em definitivo do movimento surrealista, por reacção à exclusão de Dali, proposta por Breton, e volta a aderir à AEAR. Inicia então um período de grande militância na organização, preparando o Congresso Internacional de Escritores em Defesa da Cultura, e procurando, por todas as vias, que este integre os surrealistas. Mas as crispações entre comunistas e surrealistas são muito violentas, e o Comité organizador, tendo autorizado a sua participação, não permite que os surrealistas possam nele ter palavra. Esta decisão foi tomada no dia 17 de Junho; entretanto, no dia anterior, Crevel tomou conhecimento que tinha contraído uma tuberculose renal. Na noite de 17 para 18, Crevel suicidou-se com gaz.  
 
Pode dizer-se que a obra de Crevel, no curto período de pouco mais de dez anos de produção, dividiu-se em três fases, correspondentes a diversas obsessões e problemáticas nucleares na reflexão do autor.
 
Numa primeira fase (correspondente às obras Détours, Mon Corps et moi e La Mort difficile), num esforço de autoconhecimento, de exorcizar alguns fantasmas e de compreender a sua atracção homossexual, Crevel centra-se na infância, através da invenção de personagens que são verdadeiros “alter-egos” do autor, procurando perceber até que ponto a sua família (e, em particular, a mãe) afectou a sua sensibilidade (convém recordar que o seu pai enforcou-se quando ele tinha 14 anos e que a mãe o obrigou a ver o pai enforcado, ao mesmo tempo que imprecava contra o cadáver, acusando-o de cobarde e de dissoluto; o que é certo, é que esta situação terá, talvez, originado em Crevel uma acentuada propensão suicida, espelhada na sua obra e em diversos depoimentos, ao ponto de, no seu primeiro romance, descrever, como a forma mais “decente e limpa” de morrer, aquela por que vai optar dez anos mais tarde).
 
Numa segunda fase (correspondente às obras Babylone e Etes-vous fous? e ao período de maior empenhamento no movimento surrealista), procura responder a certas questões levantadas pelo surrealismo nas suas tentativas de conseguir exprimir as manifestações do inconsciente. De facto, Crevel tinha criticado a “escrita automática” e as sessões de “sono hipnótico” (protagonizadas em particular por Robert Desnos, com quem Crevel teve várias polémicas ao longo da sua curta vida) como veículos de expressão fiel do inconsciente, considerando mesmo que a consciencialização dessas manifestações (e, por consequência, a sua transmissão “artística”) as deformava e deturpava. Por isso mesmo, estas obras de Crevel são verdadeiros “pastiches” da actividade onírica, construindo, através de imagens que se encavalitam de forma ininterrupta, personagens que aparecem e desaparecem, objectos que se humanizam e lideram a acção, saltos bruscos no espaço ou descaracterização integral deste, numa verdadeira torrente verbal que não só rompe de todo com a narrativa convencional, como pretende, em particular, “revelar” a dinâmica conflituosa e dilacerante das pulsões oriundas do inconsciente.
 
Numa terceira fase (correspondente às obras Les Pieds dans le plat e Le Roman cassé e a um período de maior empenhamento político e social), o trabalho narrativo de Crevel tem menor interesse artístico. No entanto, a radicalidade e a ombridade com que afronta o capital, e o modelo social que o sustenta, tem origem numa atitude ideológica consistente e vigilante, sem pactuações, e é expressa numa retórica panfletária de modelar qualidade literária.
 
Para o leitor actual, os textos de René Crevel poderão parecer demasiado experimentais e envolvidos nas contradições estéticas, éticas e políticas da época que os viu nascer. Porém, sobre este facto, nada pode ser apontado (nem exigido) a René Crevel e à sua obra como a nenhum outro autor que pretende ser genuinamente criativo e empenhado: a resistência do cristal que fica - o rasto de textos que se desprendem das mãos – vai-se configurando ou desfigurando pela acção devastadora do tempo. E, sobre este, o estatuto demiúrgico do autor pouco pode. 
 
Por fim, a título de informação, saliento que só tenho conhecimento da existência em língua portuguesa de duas obras de René Crevel: O Meu Corpo e Eu (Hiena) e Filhas do Vento (& Etc.). Na língua original, a maioria das suas obras encontra-se publicada em edição de bolso (Le Livre de Poche/Col. Biblio ou Gallimard/Col. L’Imaginaire) ou nas edições Pauvert.
 
 
Redigido em 2004 para uma edição comemorativa do Público da publicação de Os Manifestos Surrealistas que não se chegou a concretizar.
 
 


 
 
 


 
 
 



 
 







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