domingo, 27 de setembro de 2015

STIG DAGERMAN 1

 
 
 
 
 

O MEDO DO MEDO

 
Quando se procura situar, cultural e literariamente, um escritor como Stig Dagerman, é forçoso esboçar uma geografia literária que não se tem muitas vezes em consideração. É evidente que este autor, em termos de sensibilidade e tipificação estilística, vai “beber” a uma tradição literária sueca que desemboca no ponto de charneira que é a figura de August Strindberg. Porém, esse caudal literário, em muitas das suas variantes, aparece como uma ponta estrelar de uma constelação que tem o seu centro nas manifestações mais salientes da cultura literária alemã, situadas entre os finais do séc. XIX e o início da década de cinquenta do séc. XX - e que, de certo modo, vive sob ou em redor da sombra tutelar dessa outra personagem determinante da cultura ocidental contemporânea que é Friedrich Nietszche.

 
Situando-se nesta tradição, deve ter-se também em consideração o perfil dos autores suecos mais significativos pertencentes à geração anterior ou mesmo coevos de Stig Dagerman (Pär Lagerkvist, Hjalmar Bergman, Agnes von Krusenstjerna, Arthur Lundkvist, Harry Martinson, Eyvind Johnson e Gunnar Ekelöf), onde já perpassa uma profunda inquietação com o sentido da condição humana, resultante quer da angustiante confrontação com a morte e, por consequência, com a presença ausente de Deus, quer na relação com o Outro, e com uma crescente preocupação com a problemática social, para pereceber a experiência literária, excepcionalmente radical, que é a obra deste autor.

 
Antes de se avançar para a análise de A Serpente, a primeira obra de Stig Dagerman, publicada em 1945, e a última a ser traduzida e editada no nosso país, é de toda a justiça realçar o trabalho da editora “Antígona”. De facto, não é vulgar no nosso meio observarmos o esforço de um editor em publicar a obra ficcionista de um autor pouco conhecido de uma literatura periférica e, ainda por cima, não só com traduções cuidadas, como é o caso da obra agora publicada, mas também acompanhadas de estudos contextualizadores de inegável qualidade (o Posfácio de C. G. Bjurström desta edição de A Serpente é um excelente estudo interpretativo de toda a obra de Stig Dagerman, imprescindível para quem por ela se interessa). É, sem dúvida, um caso de paixão - como deveria sempre ser tudo o que é edição, se o mundo dos livros não fosse, helas!, também um comércio. Mas, de qualquer modo, reflecte também um dado conhecido: a obra de Stig Dagerman costuma originar estes casos de paixão, existindo quase um “clube de iniciados” que a divulga aos amigos como se fizesse dessa informação um acto de dádiva e afecto.

 
Um factor que contribuiu para a auréola mítica de Stig Dagerman foi a velocidade-relâmpago da sua carreira literária. De facto, com 22 anos, publicou a sua primeira obra e, em 1950, o seu derradeiro livro. Depois de quatro anos quase estéreis e improdutivos, suicidou-se. Tinha 31 anos. E, mal se começa a ler a sua obra, percebe-se que existia qualquer coisa de irremediável neste destino, dada a sua coerência radical.

 
A Serpente é uma obra híbrida e um pouco inclassificável. Aparentemente, parece tratar-se de uma colectânea de contos, iniciada com uma novela longa. Mas, na sequência da sua leitura, percebe-se que algumas personagens, a ambiência e alguns elementos simbólicos aparecem como obsessões recorrentes de narrativa para narrativa. Em resumo, A Serpente é um romance que, aproveitando-se, da maleabilidade do conto, permite fragmentar a unidade temporal, desenvolver personagens que noutras histórias tinham um papel secundário ou elementos simbólicos que apareciam primeiramente com uma importância lateral.

 
Esta própria estrutura(?) romanesca permite evidenciar aquilo que parece ser uma característica de toda a obra de Stig Dagerman: o seu carácter obsessivo. De facto, quem já leu os romances e as peças de teatro deste autor percebe que a culpa, a angústia, o desespero e - no caso concreto de A Serpente - o medo, como manifestações da desagregação de sentido para a existência, aparecem como destroços que emergem, de forma constante, na ondulada maré do(s) texto(s). Por outro lado, as próprias características estilísticas do autor - bem evidenciadas em A Serpente - reforçam esta componente obsessiva: o enfâse constante no encadeamento das metáforas, criando uma ambiência fantasmagórica, desfigurada, de intenso simbolismo, e anulando as fronteiras entre a realidade e a subjectividade, permite tipificar o estilo de Stig Dagerman como uma variante de “expressionismo tardio” e que ele “serve” para realçar a dimensão trágica do deambular existencial das suas personagens.

 
É evidente que a imediata tendência dos comentaristas foi associar o ambiente concentracionário de caserna militar de A Serpente à II Guerra Mundial. No entanto, é também claro que este motivo visa atingir um objectivo mais amplo: o de transmitir uma imagem ontológica em que os contornos da existência aparecem como um espaço fechado donde toda a fuga é efémera e ilusória. E para a caraterização deste sentimento, decisivo para a cultura europeia contemporânea, a obra de Stig Dagerman é um inquestionável marco.

 

Publicado no Público em 2000.

 
(Foto do Autor de Tore Falk).
 
Título: A Serpente
Autor : Stig Dagerman
Tradução: Ana Diniz
Editor: Antígona
Ano: 2000
332 págs., € 7,50

 
 
 

 
 
 



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