segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

ÁLVARO MUTIS 1

 
 
 
 

O HERÓI IMPOSSÍVEL
 
 A pouco e pouco, sem atingir a ribalta das grandes tiragens, vão sendo traduzidos e publicados no nosso país os fragmentos da peregrinação por terras deste mundo dessa personagem, única na literatura contemporânea, que dá pelo nome de Maqroll o Gajeiro. Para quem não saiba, esta personagem é o “rosto duplo” de Álvaro Mutis, um escritor colombiano de setenta e cinco anos que já ganhou quase todos os prémios literários importantes de língua espanhola, e a figura central de um dos projectos mais peculiares da actualidade literária.
 
Há cerca de quarenta anos, apareceu pela primeira vez o nome de Maqroll num poema de um autor desconhecido, funcionário de uma companhia de aviação e obcecado viajante. Era o segundo poema publicado por Álvaro Mutis e a partir desse momento, não mais editou texto algum, de cariz poético ou narrativo, em que a figura de Maqroll não pairasse: construiu assim uma máscara impossível de descolar, um “quase heterónimo. Saliente-se ainda que esta figura, durante décadas, foi simplesmente o elo de ligação de um amplo ciclo poético; só no início dos anos oitenta, quando Álvaro Mutis resolveu afrontar a narrativa, esta personagem transitou para o universo romanesco, tornando-se então, de uma forma mais explícita, a presente figura errante, sofrendo mais do que vivendo, aventuras pelos quatro cantos do mundo.
 
Referi acima que Maqroll o Gajeiro era um “quase” heterónimo de Álvaro Mutis. É certo que o autor foi delineando, fragmentariamente, o percurso, os afectos e as “atribulações” desta personagem, forjando, para isso, documentos, testemunhos, polémicas sobre os seus indícios e presenças com outros literatos e aventureiros pelo autor também inventados (e que, a seu modo, são também semi-heterónimos). Porém, Maqroll nunca chegou ao ponto de substituir o autor: Álvaro Mutis sempre se assumiu como o cronista silencioso da sua personagem. Por outro lado, - e convém esclarecer isto quando se escreve a palavra heterónimo na terra de Fernando Pessoa - a genealogia desta heteronomia nada tem a ver com o nosso poeta: ela deriva da obra de Valery Larbaud e das obras completas de A. O. Barnabooth.
 
Ainda quanto a genealogias, deve-se também referir que a simples abertura de qualquer novela de Álvaro Mutis (como, por exemplo, esta Un Bel Morir, agora publicada pela Dom Quixote, numa excelente tradução de Maria do Carmo Abreu) revela com nitidez os antepassados de Maqroll: estão todos na obra de Joseph Conrad. Diga-se de passagem que Álvaro Mutis, ao contrário do que é comum, sempre se orgulhou das suas “influências” e dos autores cuja leitura contribuiu para delimitar com nitidez o seu “território” literário; esses autores chamam-se Marcel Proust, Joseph Conrad e André Malraux. É a partir deles que Álvaro Mutis recria o seu estilo, o tratamento nuanceado e subtil da sua personagem, a ambiência das aventuras, o “tipo” de heroicidade trágica de Maqroll. Estamos, portanto, longe do “realismo mágico” que o seu conterrâneo Gabriel García Marquez universalizou e que Álvaro Mutis respeita (a cumplicidade dos dois autores vai ao ponto de García Marquez afirmar publicamente que Mutis é o seu “primeiro leitor”) sem, contudo, perfilhar.
 
Na personagem “conradiana” de Maqroll também quase nada existe das tragédias éticas que envolvem os antepassados criados pelo escritor-marinheiro polaco de nacionalidade inglesa. O pouco que existe deriva do facto de o “coração das trevas” se ter expandido para todo o planeta, obrigando Maqroll a encarar a sua vida como uma errância nostálgica em busca de um mundo já volvido. O seu olhar sobre este mundo só consegue ver uma paisagem tingida de cores elegíacas, onde o amor ou a grandeza de um espírito se transfiguram sempre em ambições funestas e em ilusões que realçam a precaridade de um destino gratuito. A morte, desdobrada até ao infinito na mediocridade dos dias e nos enredos do negócio, paira como uma nuvem cinzenta sobre a luz fugaz das paixões e dos amores que ainda impelem Maqroll a viver os dias, sobre a cumplicidade acolhedora das amizades que desaparecem, sobre a beleza das paisagens prestes a ser consumidas pela poluição e pela voracidade humana: a única heroicidade possível está no esforço de manter incólume a esperança de acreditar.
 
Exemplar do desespero desta personagem é o fragmento da sua vida que Álvaro Mutis intitulou de Un Bel Morir. Glosando com ironia um verso de Petrarca (“Un bel morir tutta una vita onora”), a novela narra o possível fim de Maqroll: perdido no porto fluvial de um qualquer país miserável sul-americano, Maqroll vai viver a sua última história de amor (intensa, fugaz e funesta como todas as outras que consegue relembrar através dos inconfundíveis contornos da sua amada) e a sua última aventura. E essa aventura é um logro em que a sua “esperança de acreditar” mais uma vez caiu: contratado para uma tarefa de caravaneiro, vê-se envolvido na teia que uns contrabandistas de armas lhe criam, perseguido pelo exército e por aqueles que o contrataram e deixando um rasto de morte entre quem lhe é querido.
 
A amargura da obra de Álvaro Mutis nada nos ensina porque tudo ensina. A verdade desta obra - que se assume como eminentemente literária, recusando qualquer compromisso com um “social” referenciável - é que, na sua aparência de história de aventuras, se transfigura num grito lancinante de dor por um mundo derrotado.  
 
 Publicado no Público em 1998.
                                                                                             
Título: Un Bel Morir
Autor: Álvaro Mutis
Tradução: Maria do Carmo Abreu
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1998
133 págs., € 14,13
 
 


Sem comentários: