quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

YUKIO MISHIMA 1


 
 
 

O CRISÂNTEMO VERMELHO

 
Um aspecto que, com o passar dos tempos, se torna mais evidente, quando nos debruçamos sobre a figura de Yukio Mishima, é que este escritor se tornou um ícone. E, quando uma entidade se transforma num ícone, uma constatação é quase sempre inevitável: a verdadeira personalidade, que esse ícone representa, fica oculta e objectivamente desconhecida – em particular para o grande público que reconhece o ícone, julgando, assim, que conhece a personalidade.

 
Ora, como ícone, Yukio Mishima representa muitas coisas. Antes do mais, a própria figura do “escritor japonês” no Ocidente. De facto, mesmo tendo em consideração o sucesso ocidental de alguns escritores de gerações posteriores (estou a recordar-me de Haruki Murakami ou de Yoshimoto Banana), não há nenhum outro autor japonês que se aproxime sequer do reconhecimento público que obteve Yukio Mishima no Ocidente (e não estou a esquecer os autores que obtiveram o Prémio Nobel, como Yasunari Kawabata ou Kenzaburo Oê).

 
Segundo, devido ao seu trágico fim, Yukio Mishima é encarado como a personificação do artista que ultrapassou os limites do possível na defesa dos valores culturais do Japão tradicional. O espectacular sacrifício final do escritor transmite a imagem de extremo guardião desses valores tradicionais, perante a ofensiva avassaladora dos modelos culturais que os EUA foram impondo ao Japão, em resultado da sua derrota militar na II Guerra Mundial.

 
Terceiro, Yukio Mishima é considerado um dos autores que mais contribuíram para a sobrevalorização da realidade corpórea, aparecendo esta, na sua plenitude física, como o radical sustentáculo do homem. Esta valorização da carnalidade, em termos filosóficos e estéticos, é não só uma componente temática central na sua obra literária, mas, como veremos mais adiante, um dos elementos cruciais nas diversas facetas que revestiu a sua produção artística.

 
Quarto, Yukio Mishima conseguiu, em termos literários e artísticos, dar um estatuto de plena cidadania ao erotismo homossexual. Neste sentido, e mesmo tendo em consideração a ambivalência com que sempre lidou com o seu desejo sexual, a figura do escritor tornou-se, nos tempos modernos, um dos estandartes, em particular no Ocidente, da comunidade homossexual.

 
Por último, Yukio Mishima tornou-se um exemplo extremo de autor que condiciona, sob os mesmos objectivos estéticos e éticos, vida e obra, equiparando-as a simples meios para atingir uma beleza que as transcende, mesmo manifestando-se apenas nelas. Saliente-se que os próprios objectivos estéticos e éticos estão, para o escritor, estreitamente entrelaçados e, na circunstância de existir alguma hierarquização, será sempre do corpo em relação ao novelo ininterrupto da escrita e da obra.  

 
Quando, em termos sociais, se faz referência a Yukio Mishima, é habitual que os nossos interlocutores façam alusão ao conjunto de retratos que o autor tirou nas décadas de cinquenta e sessenta (depois de, já adulto, se ter dedicado a uma obsessiva preparação física e a treinar diversas artes marciais, em particular “kendo”), servindo-se da arte dos notáveis fotógrafos Eikoh Hosoe e Kishin Shinoyama, ou que chamem a atenção para as posições, francamente provocatórias perante a sociedade democrática japonesa, de deificação da figura do Imperador, ou ainda para o papel do escritor na organização de um exército de samurais modernos (a milícia “Tate no Kai”) que ambicionava ser o bastião de defesa de um Japão tradicional, puro e incorruptível. Porém, é raro ouvir-se referências concretas à sua obra literária.

 
Ao observar o conjunto da produção literária de Yukio Mishima, um dos aspectos que mais impressiona é a sua dimensão, tendo em conta que o autor morreu em plena maturidade criativa: nos quarenta e cinco anos que duraram a sua vida (1925-1970), publicou perto de quarenta romances, cerca de duas dezenas de colectâneas de novelas, vários volumes de peças de teatro e de ensaio, ao mesmo tempo que mantinha uma constante intervenção pública, com polémicas sobre diversos problemas culturais e políticos (teve enormes repercussões a polémica que manteve com o futuro Prémio Nobel Kenzaburo Oê sobre as relações entre homossexualidade e comportamentos de extrema-direita ou o debate conflituoso que teve na Universidade de Tóquio, nos finais da década de sessenta, com estudantes esquerdistas e comunistas que o acusavam de defender posições fascistas).

 
Além disso, é sabido que Yukio Mishima foi sempre um leitor compulsivo, devorando não só obras de autores nipónicos (é conhecida a importância que teve no seu pensamento algumas obras clássicas japonesas, em especial as relacionadas com as regras de conduta samurai, assim como a produção de alguns autores contemporâneos, como é o caso de Junichirô Tanizaki e de Yasunari Kawabata), mas também obras da literatura ocidental, em particular a francesa (lembro, para referir apenas algumas que deixaram claro vestígio na sua actividade literária, a obra de autores como Raymond Radiguet, Jean Cocteau, Georges Bataille, Sade, etc).

 
Numa produção tão extensa, é evidente que os comentadores têm tendência para destacar certas obras em detrimento de outras, de acordo com o seu gosto pessoal: no meu caso, irei salientar, como marcos fundamentais, os romances Confissões de uma Máscara (1949) e O Templo Dourado (1956) e a tetralogia O Mar da Fertilidade (1964-1970), não só porque são verdadeiras obras-primas, mas também porque são exemplares na progressão do pensamento de Yukio Mishima. Saliente-se – e esse é, sem dúvida, um aspecto muito relevante na obra deste autor – que existe uma profunda coerência evolutiva em toda a sua produção literária, alicerçada numa complexidade estrelar de conceitos e numa teia de obsessões que, de forma gradual, vão evoluindo e encaminhando-se para um final que teria de ser inevitavelmente trágico.

 
Confissões de uma Máscara, que o autor publicou quando tinha vinte e quatro anos, é um romance de características autobiográficas, onde um jovem descobre, de forma dilacerada, o seu desejo homossexual. Dilacerada, porque a personagem principal assume que a manifestação do seu desejo tem um carácter perverso, já que a homossexualidade transforma o desejo do outro na busca de uma representação narcísica. Sendo assim, o desejo homossexual torna-se perverso por ser, na sua essência, reflector, como um espelho, e não permitir, como sucede com o desejo heterossexual, a “saída de si próprio” do sujeito para alcançar o momento de dissolução no outro (como Yukio Mishima formulará, de forma clara, mais tarde, após a empolgada leitura da obra de Georges Bataille).  

 
Esta concepção do desejo (que vai desenvolvendo e amadurecendo ao longo dos anos) nunca permitiu que Yukio Mishima tivesse uma relação pacífica com a sua própria homossexualidade. Pelo contrário, terá tendência a tornar-se tragicamente contraditória: por um lado, vai reforçando-se, no seu pensamento, a componente narcísica, ao cuidar do seu próprio corpo como representação material da identidade (movimento identitário); por outro, ao considerar a Morte como o momento sublime da unidade cósmica (satisfação plena do desejo que tem, como objectivo final, o desaparecimento do eu), começa a desenvolver uma obsessão suicida, à procura apenas de uma motivação “teatral” para se concretizar.

 
Por volta dos trinta anos, começa a espelhar-se, no seu pensamento e na sua obra, um conceito que, tendo estado sempre presente, se torna agora fulcral: a ideia do Belo como sentido transfigurador da existência. Neste aspecto, o romance O Templo Dourado é exemplar para compreender a forma como o Belo passa a ser entendido por Yukio Mishima: a tortuosa paixão do monge, que serve como personagem principal, pela beleza avassaladora do templo Kinkakuji e a sua incapacidade em aceitar-se, perante aquela beleza sublime, como ser confinado e perecível, leva-o a destruir-se ao tentar consumir pelo fogo o objecto da sua adoração.

 
Saliente-se que a noção de Belo, em Yukio Mishima, está profundamente associada à ideia de representação, uma vez que o Belo, na sua essência, é inacessível: a alma manifesta-se na beleza de um corpo, a “alma imortal japonesa” na encarnação do Imperador, o conceito estético na representação plástica, literária ou teatral. Posteriormente, concebe toda a existência como uma representação sujeita à determinação do Belo: é Ele que se deve manifestar na superfície do corpo e nas suas emoções, assim como no gesto e no texto.

 
É neste contexto que deve ser compreendido esse projecto literário, que tem tanto de ambicioso como de insólito, chamado O Mar da Fertilidade. Este título (que alude a uma região da Lua) é a afirmação irónica da esterilidade de existências que, mesmo pulsando de vida e de juventude, estão condenadas a redimir-se por um acto de beleza mortífera que supere a mera representação - da mesma forma que o protagonista de uma peça Nô só poderá abandonar a sua máscara e encarnar a sua personagem se morrer em cena.   

 
O “seppuku” teatral, encenado para que a beleza do gesto superasse a própria motivação que o originou (a tentativa de um golpe militar que permitisse retomar o antigo poder do Imperador), foi preparado até ao pormenor (Yukio Mishima deixou na editora, pronto para ser publicado, o último romance de O Mar da Fertilidade, no dia em que se suicidou), consciente que as suas palavras e a sua paixão não poderiam ter senão o repúdio dos espectadores que ele desejava que o compreendessem e amassem: rodeado pelo seu amante e pelos seus companheiros mais chegados, Yukio Mishima fez jorrar em cena, ao esventrar-se, o grande crisântemo vermelho a que confinava a sua existência.

 

Publicado pelo Centro Cultural de Belém, em 2008, por alturas do ciclo Mishima, Um Esboço do Nada.
 


 
 
 
 

 



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