O
DESEJO PELA LEITURA
Raymond
Jean é um professor universitário, ensaísta e romancista, que se tornou
conhecido nos anos sessenta e setenta pelos seus estudos de teoria da
literatura, centrados na análise da especificidade do facto literário e das
suas relações com a realidade. Nesse contexto, este autor foi um dos que, em paralelo
aos trabalhos teóricos de Roland Barthes, reforçou a ideia de que a produção
literária (e particularmente a poética) não é, na sua estrutura, mimética, mas
uma construção semântica que se materializa sobre o vazio do real, uma afirmação
verbal do desejo. Corroborando com Ponge, Raymond Jean considera que “o outro”
(a coisa, o real) só existe para provocar o desejo; mas a palavra que este gera
consome, no mesmo fogo, o sujeito e “o outro”. Em resumo, que a criação literária
é, assim, soberanamente erótica.
Em
complemento do seu trabalho teórico, publicou uma já vasta obra de ficcionista,
na qual se destaca a novela agora traduzida, A Leitora (que deu origem
a um filme de Michel Deville que há pouco passou, com algum sucesso, nos ecrãs
nacionais), porque é um hábil e malicioso exercício sobre as posições teóricas
do autor.
A
Leitora narra as peripécias de uma ex-aluna de literatura
que, tendo abandonado os seus estudos para constituir família e encontrando-se
ociosa numa cidade de província, resolve colocar um anúncio no jornal,
oferecendo-se como leitora ao domicílio. Sucede, no entanto, que esta opção
profissional, na aparência inócua, vai revelar-se como uma experiência perturbante
e de efeitos imprevisíveis.
As peripécias
que desencadeiam este ofício da protagonista de A Leitora vão evidenciar
que o que move para a leitura, tal como para a escrita, é um desejo de
realidade que embate na página branca e nos caracteres negros. Quer isto dizer,
que a própria palavra é um meio que dá uma mais-valia ao desejo que lhe
interdita qualquer efectiva consumação. A protagonista, ao infiltrar-se no meio
do acto de ler, num desejo ocultamente “perverso” de se expôr na nudez polissémica
da palavra, dando-lhe corpo e voz, provoca um inevitável “desvio” para si do
desejo que a palavra lida contém. Tanto mais que a palavra lida ouve-se a si
mesma, encadeando-se, portanto, em pulsão, o desejo dos outros com aquele que a
palavra provoca na própria protagonista. O desejo da palavra irá, assim,
“desabrochar” no corpo que lhe serve de suporte e que com ele se encontra identificado.
Porém,
esta experiência tem inúmeros riscos. Antes do mais, porque, de texto para
texto, a protagonista toma consciência de que são estes que a escolhem, e não o
contrário, transfigurando-lhe, a pouco e pouco, a sua própria natureza e
levando-a a uma perca da realidade, do sentido do concreto. Por outro, porque
uma vontade narcísica de ordenação ou de transformação do real pode tornar a
palavra em “instrumento/vítima” de um poder exterior: é essa experiência limite
- sadiana - que leva a abdicação da protagonista, deixando a palavra sem voz.
Não se
julgue, no entanto, que A Leitora é apenas um sucedâneo, mais
ou menos conseguido, de teorias literárias, sem nenhuma autonomia própria. Pelo
contrário, esta novela flui num clima de difuso e ambíguo erotismo, de
cumplicidades afloradas, que o transforma numa aprazível e muitas vezes até exaltante
leitura: é, por isso mesmo, um bom exemplo das teorias que lhe estão
subjacentes.
Publicado no Público em 1992.
Titulo: A Leitora
Autor: Raymond Jean
Tradutor: Manuela Torres
Editor: Teorema
Ano: 1992
139 págs., esg.
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