quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

RAYMOND JEAN

 
 

 
O DESEJO PELA LEITURA                    
 
Raymond Jean é um professor universitário, ensaísta e romancista, que se tornou conhecido nos anos sessenta e setenta pelos seus estudos de teoria da literatura, centrados na análise da especificidade do facto literário e das suas relações com a realidade. Nesse contexto, este autor foi um dos que, em paralelo aos trabalhos teóricos de Roland Barthes, reforçou a ideia de que a produção literária (e particularmente a poética) não é, na sua estrutura, mimética, mas uma construção semântica que se materializa sobre o vazio do real, uma afirmação verbal do desejo. Corroborando com Ponge, Raymond Jean considera que “o outro” (a coisa, o real) só existe para provocar o desejo; mas a palavra que este gera consome, no mesmo fogo, o sujeito e “o outro”. Em resumo, que a criação literária é, assim, soberanamente erótica.
 
Em complemento do seu trabalho teórico, publicou uma já vasta obra de ficcionista, na qual se destaca a novela agora traduzida, A Leitora (que deu origem a um filme de Michel Deville que há pouco passou, com algum sucesso, nos ecrãs nacionais), porque é um hábil e malicioso exercício sobre as posições teóricas do autor.
 
A Leitora narra as peripécias de uma ex-aluna de literatura que, tendo abandonado os seus estudos para constituir família e encontrando-se ociosa numa cidade de província, resolve colocar um anúncio no jornal, oferecendo-se como leitora ao domicílio. Sucede, no entanto, que esta opção profissional, na aparência inócua, vai revelar-se como uma experiência perturbante e de efeitos imprevisíveis.
 
As peripécias que desencadeiam este ofício da protagonista de A Leitora vão evidenciar que o que move para a leitura, tal como para a escrita, é um desejo de realidade que embate na página branca e nos caracteres negros. Quer isto dizer, que a própria palavra é um meio que dá uma mais-valia ao desejo que lhe interdita qualquer efectiva consumação. A protagonista, ao infiltrar-se no meio do acto de ler, num desejo ocultamente “perverso” de se expôr na nudez polissémica da palavra, dando-lhe corpo e voz, provoca um inevitável “desvio” para si do desejo que a palavra lida contém. Tanto mais que a palavra lida ouve-se a si mesma, encadeando-se, portanto, em pulsão, o desejo dos outros com aquele que a palavra provoca na própria protagonista. O desejo da palavra irá, assim, “desabrochar” no corpo que lhe serve de suporte e que com ele se encontra identificado.
 
Porém, esta experiência tem inúmeros riscos. Antes do mais, porque, de texto para texto, a protagonista toma consciência de que são estes que a escolhem, e não o contrário, transfigurando-lhe, a pouco e pouco, a sua própria natureza e levando-a a uma perca da realidade, do sentido do concreto. Por outro, porque uma vontade narcísica de ordenação ou de transformação do real pode tornar a palavra em “instrumento/vítima” de um poder exterior: é essa experiência limite - sadiana - que leva a abdicação da protagonista, deixando a palavra sem voz.
 
Não se julgue, no entanto, que A Leitora é apenas um sucedâneo, mais ou menos conseguido, de teorias literárias, sem nenhuma autonomia própria. Pelo contrário, esta novela flui num clima de difuso e ambíguo erotismo, de cumplicidades afloradas, que o transforma numa aprazível e muitas vezes até exaltante leitura: é, por isso mesmo, um bom exemplo das teorias que lhe estão subjacentes.
 
Publicado no Público em 1992.
 
  
Titulo: A Leitora
Autor: Raymond Jean
Tradutor: Manuela Torres
Editor: Teorema
Ano: 1992
139 págs.,  esg.
 
 
 


Sem comentários: