domingo, 10 de janeiro de 2016

VLADIMIR NABOKOV

 



A CONVICÇÃO NO ESTILO

 

 “Nabokov? O da Lolita? Muito picante, não é?”

 
Claro. Este meu conhecimento de praia, para quem a literatura é apenas um ameno entretenimento no calor do Estio, classificou Nabokov como quase toda a gente. E, no entanto, mal sabe como aquelas simples perguntas, se Nabokov as ouvisse, o transformariam numa pilha de fúrias.

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Poucas obras sofreram um percurso tão imprevisível como a deste autor recatado que desejava obter o reconhecimento de iniciados antes dos generalizados louvores do público. E esta atitude, um pouco pedante, era não só resultante da profunda convicção de Nabokov na presunção do seu génio, mas também porque a sua vida o ensinara a não temer o tempo: todos os grandes acontecimentos deste século (a Revolução Russa, as Guerras Mundiais) atravessaram o seu destino, obrigando-o a uma permanente fuga, ao abandono de uma língua natal (que ele particularmente estimava) e a uma existência bem precária num país, os Estados Unidos, onde, de início, poucos (Edmund Wilson e alguns mais) o compreendiam e estimavam. De certo modo, Lolita foi, com o seu escândalo e a denúncia pública de pornografia, uma traição aos caminhos que ele próprio estabelecera para a sua produção literária. E Nabokov estava certo: todos os seus romances ficaram “ocultos” por Lolita; e se a publicidade indirecta feita a esta obra ajudou o autor a adquirir as condições materiais, que sempre lhe tinham faltado, para desenvolver com serenidade a sua restante produção literária, e a obter, para além disso, o reconhecimento da crítica para os seus dotes excepcionais de estilista, isso não obviou a que só perto dos dias de hoje se começassem a divulgar amplamente os seus restantes romances.

 
Em Portugal, para lá de Lolita, só foi traduzido Ada ou o Ardor, a sua autobiografia, e, no ano passado, Transparências, uma narrativa em parte escrita no nosso país. Este ano, de supetão, apareceram duas obras, uma atrás da outra: o romance A Verdadeira Vida de Sebastian Knight, a sua primeira obra em inglês, datado de 1941, e o conto O Encantador, a sua última obra em russo, de 1939, mas só editada após a morte do autor. Falta ainda toda a sua produção nesta língua e, em inglês, entre muitas outras, a sua obra-prima, Pale Fire.

 
Há, de um modo notório, e sem minimizar a enorme qualidade da produção romanesca em russo de Nabokov, na sua ficção em inglês, uma intencionalidade formal que produz sentidos que integram e amplificam o imediatismo do enredo. Mesmo em Lolita. Com alguma maldade, pode chegar a afirmar-se que Nabokov é um admirável estilista de coisa nenhuma. De facto, existe nele uma preocupação prioritária em trabalhar os materiais narrativos, em conjugação profunda com os objectivos dramáticos, que dão um cunho invulgarmente percursor e moderno à sua ficção.

 

ONDE ESTÁ A “VERDADEIRA” VIDA?

 
É o caso de A Verdadeira Vida de Sebastian Knight. O enredo é muito simples: o narrador, fascinado pela personalidade humana e artística do seu irmão escritor, recentemente falecido, vai tentar estabelecer, através da memória e de testemunhos diversos, a sua “verdadeira” biografia (em confronto com outra, redigida por um antigo secretário particular do irmão, que considera difamatória).

 
Este enredo vai servir às mil maravilhas para Nabokov “expor” os mecanismos com que a memória transforma a realidade em palavra. A obra constrói-se em sinuosidades e a personagem de Sebastian Knight aparece em lampejos, conforme evolui e involui a investigação do narrador. A representação do tempo, entre a linearidade da investigação e a linearidade da vida do “biografado”, estilhaça-se, dando, assim, a ilusão de estarmos em presença, como se diria há alguns anos, de uma obra em “construção”.

 
Mas, entre a memória do narrador e a das personagens que, com intensidades afectivas diversas, testemunharam a vida de Sebastian Knight, há desajustamentos, visões contraditórias. E, por isso, na sua tentativa de apreender uma vida, o narrador abre um percurso que desemboca sempre em interrogações: entre a “figura física” e a personagem que cada um dela cria, qual é a “verdadeiramente” real? De que modo os espaços, os objectos, os papéis, que os dedos do tempo deixaram cair depois da morte de quem os possuiu, enunciam o seu proprietário? Serão acidentes ou está neles “verdadeiramente” inscrita a sua existência? E por que interstícios transparece nas obras de ficção de Sebastian Knight a sua “verdadeira” personalidade?

 
Todas estas interrogações originam “verdades” múltiplas com um único referente. E, por isso, o narrador pressente que o Uno, que nomeia a personagem de Sebastian Knight, sempre lhe escapou, sempre esteve adiante da sua investigação. Prevê-O na última obra de ficção do escritor, The Doubtful Asphodel (que narra a experiência e a reflexão de um moribundo); mas o romance acaba no “lado de cá” da morte e o sentido final da obra (e também, provavelmente, da vida de Sebastian Knight) “viaja” com a personagem principal. Depois, prevê-O na vigília do enterro de Sebastian Knight; mas descobre que esta vigília foi um logro e que nenhum corpo “é” uma entidade.

 
E, assim, o narrador, parafraseando a sua caracterização do último romance do irmão, compreende que todos os livros, todos os corpos são mortos, isto é, significantes de um referente que só ganha sangue com a memória dos outros. É que “a alma é apenas uma forma de ser, não um estado constante, e que qualquer alma pode ser nossa, se a encontrarmos e seguirmos as suas ondulações (...) E, assim — eu sou Sebastian Knight.” Ou, como refere de forma mais explícita a frase com que o romance termina: “Eu sou Sebastian, ou Sebastian é eu, ou talvez sejamos ambos alguém que nenhum de nós conhece.

 
Esta engenhosa, e irónica, paródia de uma biografia (repare-se neste “artifício”: inúmeros dados biográficos de Sebastian Knight são idênticos ou congéneres aos do autor, parecendo, por conseguinte, que o narrador investiga Vladimir Nabokov, oculto sob o pseudónimo de Sebastian Knight) atinge, então, o núcleo duro que ilumina todo o projecto deste romance: todas as ficções, todas as biografias são, deste modo, autobiografias da “verdadeira vida” que só existe na memória e no coração do leitor.

 
ADOLESCENTES, NINFITAS, PERDIÇÕES DE VIDA

 
Nem de perto, nem de longe, O Encantador tem a importância de uma obra como A Verdadeira Vida de Sebastian Knight. Mas tem, de qualquer forma, um enorme interesse na perspectiva da exegese literária. Expliquemo-nos: este conto foi a primeira tentativa de Nabokov para tratar o tema que irá desenvolver amplamente em Lolita.

 
O autor escrevera este conto em Paris, pouco antes de fugir aos exércitos nazis e de embarcar para a América, e estava convencido que o tinha destruído. Foi em 1959, já depois de ter escrito e publicado Lolita, que o veio a descobrir no meio dos seus papéis. Por isso, O Encantador não é um “esboço” deste romance, mas um primeiro tentame em abordar um tema que, de um modo intermitente, se fixava ofuscantemente na atenção do escritor.

 
Assim, para lá da importância específica deste conto - e algumas das suas páginas são notáveis exemplos do inconfundível estilo do autor, como, saliente-se, aquelas em que são descritos, num jogo humorado de alusões, os sonhos eróticos do pedófilo, ou as de impressionismo sincopado, quase eléctrico, em que é exposto o seu suicídio – é muito tentador confrontá-lo com Lolita, em particular para perceber como a ideia foi “amadurecendo” em Nabokov.

 
As diferenças no tratamento das personagens e no desenvolvimento do tema revelam mutações de intencionalidade e de perspectiva que, em grande parte, são originadas pela deslocação do autor para os Estados Unidos. Antes do mais, a principal mudança está na caracterização da adolescente “vítima” dos desejos eróticos da personagem principal: enquanto, em O Encantador, aquela é uma entidade neutra, na aparência assexuada, sem atingir uma efectiva autonomia (não é por acaso que nenhuma personagem é nomeada, parecendo, por conseguinte, não ter qualquer existência exterior à relação que motiva esta obra), Lolita afirma-se entre a inocência e a perversão, numa teia feita de atracção e infantilismo onde enreda o desejo perturbado e ansioso de Humbert Humbert. O transtorno deste não é situável no campo das “perversões doentias” (como sucede com a personagem principal de O Encantador), sendo muito mais resultante do seu desejo em não resistir às obsessões eróticas e estéticas que, de modo oculto e ínvio, toda uma lógica social vai alimentando e cultivando, para, depois, condenar quem as satisfaz. Por isso, do conto para o romance, o estatuto de “vítima” inverte-se, da mesma forma que se altera a personagem dominante da acção, com a consequente inversão do nome da entidade que dá título às obras.

 
Mas as variantes na forma de desenvolvimento do tema dão também uma outra amplitude e acutilância ao romance, fazendo com que a sua “história” não seja facilmente etiquetável - como é o caso de O Encantador: o carácter de “confissão” perante um tribunal de Lolita dá-lhe uma perspectiva muito mais subjectiva, pessoalizada, do que a do conto, forçando o leitor a uma maior envolvência ou crispação; a vastidão do cenário americano (com a ininterrupta repetição de estradas, motéis, cidades do interior) reforça o sentido de “amor de perdição” do romance, impossível de conceber em O Encantador, uma vez que as componentes fuga e deambulação, resultantes do obsessivo pânico ao meio social, são neste meramente esboçadas; a personagem Charlotte Haze, essencial em Lolita, porque propicia o radical confronto entre uma relação amorosa, inadmissível em termos institucionais, e uma sexualidade “legítima”, mas maléfica e prostituidora, não tem paralelo no conto; por fim, o final, ao permitir o encontro dos “amantes abandonados” e o olhar destroçado de Humbert Humbert com o distanciado de Lolita, assim como o assassínio patético de Clare Quilty, em contraste com o abrupto suicídio do conto, dão a verdadeira dimensão trágica e insustentável daquelas exaltações amorosas face à mediocridade e hipocrisia da moral social.

 
Estas diferenças (e muitas, muitas mais) transformam Lolita numa das mais subversivas e perturbantes histórias de amor escritas neste século, onde é possível estabelecer inúmeros níveis de leitura e, por isso, definir implicações bem distintas. Perante o romance, O Encantador reduz-se a uma narração linear, conclusiva em si mesma, de um mero caso de tentativa de violação pedófila.

 


Publicado no Público em 1990.

 
(Foto do Autor de Yousuf Karsh)
 
 

Titulo: A Verdadeira Vida de Sebastian Knight
Autor: Vladimir Nabokov
Tradução: Ana Luisa Faria
Editora: Publicações Dom Quixote
Ano: 1990
205 págs., € 7,56

 

Titulo: O Encantador
Autor: Vladimir Nabokov
Tradução: Manuela Madureira (a partir da tradução inglesa de Dimitri Nabokov)
Editora: Editorial Presença
Ano: 1990
117 págs., esg.




 

 



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