segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

AMÉLIE NOTHOMB


 
 
 
 

ESCRITOR, ASSASSINO
 
O aparecimento do romance Higiene do Assassino e o seu imediato sucesso foram, nos tempos recentes em França, um caso invulgar e transformaram a sua autora, Amélie Nothomb, numa figura com alguma carga mediática, dada a dimensão polémica desta obra e o reconhecimento mais ou menos unânime que recebeu (e que se atenuou, note-se, em obras posteriores). Esta situação acentuou-se devido à idade da autora (tinha vinte e cinco anos quando o romance foi publicado) e, em particular, porque este romance destoa bastante da ambiência e das técnicas narrativas mais ou menos comuns aos jovens autores. De facto, nada existe em Higiene do Assassino que o configure aos parâmetros habituais de um certo realismo “violento”, nem a universos próximos do “rock”, ou a técnicas narrativas retiradas das artes cinematográficas. Para desvendar alguma genealogia neste romance, ter-se-á que ir buscar uma linha, dentro da literatura francesa, que vem de certas manifestações de um romantismo mais extremo até às obras de Céline e Louis Calaferte, e se caracteriza por uma radical hostilização a qualquer prática social e por uma defesa feroz de um universo que procura ser coerente em exclusivo com exigências próprias em termos estéticos e éticos.
 
Saliente-se que a figura de Céline paira permanentemente em Higiene do Assassino, diversas vezes é citada e tem um enorme peso na caracterização moral e psicológica da personagem principal. Esta trata-se de um escritor consagrado, que já obteve o Prémio Nobel, bastante idoso, e que, ao tornar-se público que está à beira da morte com uma doença bizarra, o “cancro das cartilagens”, começa a ser assediado pelos jornalistas para dar uma primeira e última entrevista. O aliciante dessa entrevista é tanto maior quanto se sabe que este escritor, de uma obesidade tão monstruosa que, desde a adolescência, ficou imobilizado numa cadeira de rodas, é de uma misantropia quase obscena. O romance é, por conseguinte, constituído por uma sucessão de entrevistas, já que os jornalistas acabam sempre por desistir devido à repugnância que lhes provoca a personalidade do entrevistado… até que, por fim, uma jornalista consegue enfrentar o escritor e descobrir a verdade terrível que fundamenta a sua personalidade.
 
Nestas sucessivas entrevistas, percebe-se que o escritor, ao falar da sua vida e da sua arte, tem sempre subjacente uma certa concepção de beleza que se caracteriza por algo que está no avesso da condição humana (condição terrena, sexuada, em que a própria existência da consciência a torna “impura”) e que esta apenas pode conceber como uma “imagem” perdida. Por isso, é na infância - como estádio em que a condição humana não está de todo formada - que se situa o momento existencial mais próximo dessa beleza etérea. A condição humana, que for “tocada” pela descoberta dessa “imagem”, só a poderá preservar se, de uma forma constante, se repudiar a si própria.
 
A actividade de escrever, que é, no essencial, motivada pela descoberta dessa “imagem”, resume-se a defendê-la, lutando por todas as formas contra o que, no escritor e nos outros, representa a denegrida condição humana. A imprecação, que é a principal arma do escritor, visa atacar aquilo que no romance se denomina a “má-fé”, isto é, a tendência da condição humana para mais ou menos aceitar a sua aviltante mediocridade e, de seguida, através da escrita ou de qualquer forma de criação artística, expandir, de modo consolador, essa “mentira” pelos outros. Por isso, o escritor, ao denunciar a condição humana, deve fazer da sua obra um acto de maldade absoluta, destruindo todas as referências de quem a lê, pois que o desespero provocado pelo “pecado original” da sua própria condição, expresso na obra, é a prova mais do que suficiente de quanto ama os outros: a sua obrigação é transformar o leitor, acordando-o para a “má-fé” a que ele se “agarra” como forma de sobrevivência e ajudando-o a descobrir e a ser fiel à sua própria “imagem de beleza”.
 
Uma vez que esta “imagem de beleza” é, na maioria das vezes, um ente amado que quem ama tem a obrigação de preservar no momento perfeito (isto é, no momento em que o amor mais “eterniza” o amado), deverá, se necessário for, recorrer para isso ao assassínio. O sacrifício do assassínio torna-se assim a maior comprovação, de quem ama e de quem é amado (ou, por outras palavras, da vítima e do algoz), de aceitar a exigência da preservação da “imagem de beleza”, o essencial sentido do amor e da condição humana. Mas esta exigência terrível avassala toda a existência, impondo, além da preservação, a sua transmissão intacta a outrem que ficará com esse legado: o escritor sabe que escreve para um único leitor que, mesmo desconhecido, será aquele que o ama e aquele que amou ao escrever a sua obra.
 
Ao privilegiarmos esta linha de leitura de Higiene do Assassino, pretendemos realçar o aspecto de este romance ser o último representante, em termos de desenvolvimento, de uma determinada concepção do acto de escrita e que, por isso, tem uma importância inquestionável. Perante obras como esta, a questão de ser ou não uma obra-prima, torna-se uma questão menor. Perante obras como esta, que expele para o leitor um desespero tão pungente que mais parece um perfume venenoso, devemo-nos interrogar pelas implicações da sua “verdadeira” leitura. E o maior elogio que se lhe pode fazer é afirmar que, efectivamente, ela deixa um lastro de perturbação que, aceite-se ou não as teorias estéticas que a fundamentam, transfigura o olhar de quem lê.
 
Publicado no Público em 1997.
 
 
Título: Higiene do Assassino
Autor: Amélie Nothomb
Tradutor: Maria Judite de Carvalho e Maria Bragança
Editor: Editorial Presença
Ano: 1997
157 págs., esg.
 
 
 


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