ESCRITOR,
ASSASSINO
O aparecimento
do romance Higiene do Assassino e o seu imediato sucesso foram, nos tempos
recentes em França, um caso invulgar e transformaram a sua autora, Amélie
Nothomb, numa figura com alguma carga mediática, dada a dimensão polémica desta
obra e o reconhecimento mais ou menos unânime que recebeu (e que se atenuou,
note-se, em obras posteriores). Esta situação acentuou-se devido à idade da
autora (tinha vinte e cinco anos quando o romance foi publicado) e, em
particular, porque este romance destoa bastante da ambiência e das técnicas
narrativas mais ou menos comuns aos jovens autores. De facto, nada existe em Higiene
do Assassino que o configure
aos parâmetros habituais de um certo realismo “violento”, nem a universos
próximos do “rock”, ou a técnicas narrativas retiradas das artes
cinematográficas. Para desvendar alguma genealogia neste romance, ter-se-á que
ir buscar uma linha, dentro da literatura francesa, que vem de certas
manifestações de um romantismo mais extremo até às obras de Céline e Louis
Calaferte, e se caracteriza por uma radical hostilização a qualquer prática
social e por uma defesa feroz de um universo que procura ser coerente em exclusivo
com exigências próprias em termos estéticos e éticos.
Saliente-se que
a figura de Céline paira permanentemente em Higiene do Assassino,
diversas vezes é citada e tem um enorme peso na caracterização moral e
psicológica da personagem principal. Esta trata-se de um escritor consagrado,
que já obteve o Prémio Nobel, bastante idoso, e que, ao tornar-se público que
está à beira da morte com uma doença bizarra, o “cancro das cartilagens”,
começa a ser assediado pelos jornalistas para dar uma primeira e última
entrevista. O aliciante dessa entrevista é tanto maior quanto se sabe que este
escritor, de uma obesidade tão monstruosa que, desde a adolescência, ficou
imobilizado numa cadeira de rodas, é de uma misantropia quase obscena. O
romance é, por conseguinte, constituído por uma sucessão de entrevistas, já que
os jornalistas acabam sempre por desistir devido à repugnância que lhes provoca
a personalidade do entrevistado… até que, por fim, uma jornalista consegue
enfrentar o escritor e descobrir a verdade terrível que fundamenta a sua
personalidade.
Nestas
sucessivas entrevistas, percebe-se que o escritor, ao falar da sua vida e da
sua arte, tem sempre subjacente uma certa concepção de beleza que se
caracteriza por algo que está no avesso da condição humana (condição terrena,
sexuada, em que a própria existência da consciência a torna “impura”) e que esta apenas pode conceber como
uma “imagem” perdida. Por isso, é na infância - como estádio em que a condição
humana não está de todo formada - que se situa o momento existencial mais
próximo dessa beleza etérea. A condição humana, que for “tocada” pela descoberta
dessa “imagem”, só a poderá preservar
se, de uma forma constante, se repudiar a si própria.
A actividade de
escrever, que é, no essencial, motivada pela descoberta dessa “imagem”,
resume-se a defendê-la, lutando por todas as formas contra o que, no escritor e
nos outros, representa a denegrida condição humana. A imprecação, que é a
principal arma do escritor, visa atacar aquilo que no romance se denomina a
“má-fé”, isto é, a tendência da condição humana para mais ou menos aceitar a
sua aviltante mediocridade e, de seguida, através da escrita ou de qualquer
forma de criação artística, expandir, de modo consolador, essa “mentira” pelos
outros. Por isso, o escritor, ao denunciar a condição humana, deve fazer da sua
obra um acto de maldade absoluta, destruindo todas as referências de quem a lê,
pois que o desespero provocado pelo “pecado original” da sua própria condição, expresso na obra, é a prova mais do que
suficiente de quanto ama os outros: a sua obrigação é transformar o leitor,
acordando-o para a “má-fé” a que ele se “agarra” como forma de sobrevivência e
ajudando-o a descobrir e a ser fiel à sua própria “imagem de beleza”.
Uma vez que esta
“imagem de beleza” é, na maioria das vezes, um ente amado que quem ama tem a
obrigação de preservar no momento perfeito (isto é, no momento em que o amor
mais “eterniza” o amado), deverá, se necessário for, recorrer para isso ao
assassínio. O sacrifício do assassínio torna-se assim a maior comprovação, de
quem ama e de quem é amado (ou, por outras palavras, da vítima e do algoz), de
aceitar a exigência da preservação da “imagem de beleza”, o essencial sentido
do amor e da condição humana. Mas esta exigência terrível avassala toda a
existência, impondo, além da preservação, a sua transmissão intacta a outrem que
ficará com esse legado: o escritor sabe que escreve para um único leitor que,
mesmo desconhecido, será aquele que o ama e aquele que amou ao escrever a sua
obra.
Ao
privilegiarmos esta linha de leitura de Higiene do Assassino, pretendemos
realçar o aspecto de este romance ser o último representante, em termos de
desenvolvimento, de uma determinada concepção do acto de escrita e que, por
isso, tem uma importância inquestionável. Perante obras como esta, a questão de
ser ou não uma obra-prima, torna-se uma questão menor. Perante obras como esta,
que expele para o leitor um desespero tão pungente que mais parece um perfume
venenoso, devemo-nos interrogar pelas implicações da sua “verdadeira” leitura.
E o maior elogio que se lhe pode fazer é afirmar que, efectivamente, ela deixa
um lastro de perturbação que, aceite-se ou não as teorias estéticas que a
fundamentam, transfigura o olhar de quem lê.
Publicado no Público em 1997.
Título: Higiene do Assassino
Autor: Amélie Nothomb
Tradutor: Maria Judite de Carvalho e Maria Bragança
Editor: Editorial Presença
Ano: 1997
157 págs., esg.
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