sexta-feira, 27 de novembro de 2015

EVELYN WAUGH

 


A FICÇÃO DOS EQUÍVOCOS
 
Desde as suas primeiras obras, nos finais da década de vinte, que Evelyn Waugh provoca reacções contraditórias entre os leitores e os críticos: por um lado, é considerado um dos mais brilhantes humoristas da literatura inglesa e um estilista destacado numa geração que inclui ficcionistas como Greene, Orwell e Isherwood; por outro, como um escritor bem “irritante”, cujos romances disfarçam mal uma perspectiva conservadora e marcadamente desajustada para compreender as dinâmicas sociais deste século.
 
Esta última forma de encarar Evelyn Waugh tem razões objectivas: o escritor nunca procurou esconder o seu catolicismo militante nem a sua defesa de uma ordem social que aceita o ancestral posicionamento de topo da aristocracia. Os biógrafos e analistas pretendem explicar este esforçado empenhamento pela sua conversão tardia (Evelyn Waugh era anglicano e só em adulto, já com obra publicada, se tornou um fiel servidor da Igreja Romana) e pela sua origem numa “middle-class” que se habituou, com reverência, a admirar as qualidades da nobreza. No entanto, talvez se deva encarar Evelyn Waugh – para o melhor e para o pior - como um escritor genuinamente britânico que sempre entendeu que as melhores virtudes civilizacionais do seu povo estavam num distanciamento displicente e humorado das diversas problemáticas da sociedade contemporânea e num rusticismo aristocrático, educado e compreensivo.
 
Scoop, o romance agora traduzido com o título de Enviado Especial, foi dos que, desde a sua edição original, mais dividiu os críticos. Bem característico da segunda fase da obra do escritor (que vai desde Vile Bodies, 1930, até ao início, em 1952, da publicação da trilogia Sword of Honour - exceptuando-se, no entanto, deste conjunto, pelas suas características distintas, o romance Reviver o Passado em Brideshead), onde pretende demolir, pelo humor, certo “modus vivendi” do chamado “mundo moderno”, este romance foca o universo dos jornais, em especial a sua ânsia de notícias, por motivos de competitividade e captação de públicos.
 
Enviado Especial é construído segundo o modelo clássico de humor que assenta no encadeamento constante de equívocos, transformando toda a acção num crescendo de situações absurdas, que, por fim, se revelam eficazes e adequadas à resolução da situação problemática originária. Esta resolução aleatória provoca sempre uma inevitável desvalorização, pelo ridículo, da situação e do universo que a criou, tornando-se, assim, óbvio o objectivo de toda a estratégia narrativa. No caso vertente deste romance, a acção desencadeia-se com a confusão do editor “do internacional” de um diário londrino que envia, como repórter especial para um país africano em guerra civil (percebe-se, sem nunca ser nomeado, que esse país é a Abissínia), um obscuro correspondente de província, em vez de um escritor de sucesso com nome idêntico. No entanto, a inexperiência, acerca do mundo do jornalismo e da política internacional deste repórter ocasional, permite-lhe descobrir, um pouco com a clarividência dos cegos, que a guerra civil é um acontecimento “forjado” pelos jornalistas e que a realidade do país é diametralmente diferente. Consegue, deste modo, um “furo” jornalístico que satisfaz em pleno o diário, a ponto de este, sem ter ainda descoberto a confusão original, pressionar o governo britânico para que conceda ao repórter um título de nobreza.
 
Esta trama possibilita a Evelyn Waugh desferir as suas setas mordazes sobre um conjunto de “realidades” que encara como sintomáticas do “declínio e queda” da civilização ocidental: a mundanidade de certos meios da “elite” urbana que, em consequência do seu poder económico e político, tem capacidades de manipulação das necessidades de informação do público; o papel de um matriarcado que, dado o seu ascendente sexual sobre as figuras masculinas, transforma os afectos em domínio ou num mesquinho aproveitamento material; a incompetência e a mediocridade de um jornalismo disposto a “caçar notícias” só com a intenção de aumentar as vendas e reforçar o seu prestígio; a introdução de modelos políticos ocidentais em África, provocando situações de fácil oportunismo e profunda corrupção, etc., etc.
 
Face a certas situações actuais, parece que a recuperação deste romance tem toda a pertinência. Creio, contudo, que esta perspectiva é mais um equívoco a juntar ao conjunto de equívocos com que Enviado Especial é construído. Nesse aspecto, a sua conclusão é reveladora: face ao “mundo moderno”, a melhor atitude é regressar a uma existência contemplativa, resignadamente satisfeita com os amenos e inconsequentes conflitos caseiros de uma ampla família.
 
Alguém poderá, com bom senso, dar crédito a um “olhar crítico” cuja alternativa redentora é o retorno a um tempo fechado que a dinâmica social há muito fez desmoronar e tornou arqueológico?
 
Publicado no Público em 1991.
 
 
Título: Enviado Especial
Autor: Evelyn Waugh
Tradutor: Luis Almeida Campos
Ano: 1991
Editor: Bertrand Editora
304 págs., esg.
 
 
 



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