terça-feira, 12 de julho de 2016

FRANÇOISE MALLET-JORIS

 
 
A VORACIDADE
 
Em 1950, quando Françoise Mallet-Joris, com vinte anos, publicou o seu primeiro romance, Le Rempart des Béguines, em que uma adolescente se entregava aos prazeres culpabilizados de uma relação amorosa com a amante do pai, entendeu-se em França que esta obra (como, alguns anos mais tarde, as de Françoise Sagan) era exemplificativa do comportamento de uma geração que, acordada do pesadelo da guerra, se sentia liberta para práticas afectivas e sociais que entravam em confronto com certo convencionalismo hipócrita.
 
A obra desta romancista de origem belga (e filha de outra notável, e um pouco esquecida, escritora: Suzanne Lilar), depois de percorrer uma longa carreira de ficcionista, encontra-se hoje bem longe daqueles inícios “escandalosos”. Porém, mesmo com certa irregularidade, vem evidenciando algumas das características mais salientes da produção romanesca da sua geração: a tentativa de conciliar o romance tradicional com técnicas narrativas oriundas da literatura americana e do cinema; um estilo que, com naturalidade, se desloca da frase curta e concisa para largas digressões líricas; a propensão para procurar desvendar a dimensão oculta, até mesmo metafísica, nas mais comuns situações de quotidiano.
 
Divina, o último romance de Françoise Mallet-Joris, agora traduzido, desenrola-se a partir de uma destas situações do dia a dia: uma celibatária professora de liceu, em consequência de uma avaria nos ascensores da torre onde mora, que a deixa incapaz de sair, descobre que está pesada em excesso e decide fazer dieta. O resultado desta opção vai, no entanto, desencadear um conjunto de situações profissionais e pessoais que impelem a personagem principal, Joana/Divina, a uma reflexão, com inúmeras derivações, sobre o papel que o corpo desempenha na sociabilidade e no afecto e sobre o sentido último da fome e da saciedade.
 
Sempre Joana/Divina se tinha inclinado, na linha da tradição gnóstica e judaico-cristã, para entender o corpo não como um lugar de passagem para a convivialidade, mas como lugar de enclausuramento e de ofuscação do olhar dos outros para a verdadeira realidade do ser: a experiência da dieta, ao provocar alterações imprevisíveis no comportamento dos outros, vem confirmar-lhe a justeza desta posição. Por outro lado, sempre sentira no corpo uma volúpia, quase autónoma de si, sensitiva e cognitiva, como se procurasse, pela voracidade, atingir a comunhão com o Todo. É por isso que entende que o comportamento erótico provocará, de forma quase inevitável, logro e sofrimento - que as experiências nefastas da avó e da mãe confirmam -, na medida em que a efectiva posse (a deglutição do Todo) lhe está vedada: nesse sentido, mais vale aceitar a intromissão brutal de um violador que, ciclicamente, a visita de noite, porque este dá-lhe a ilusão de “tocar” a face anónima, universal e transparente de Deus.
 
Esta reflexão permite Joana/Divina, no entanto, perceber que o projecto de atingir a saciedade é absurdo: há sempre um excedente que oculta o conhecimento de Deus. Por isso, convence-se, após a dieta, que o Todo está na renúncia intencional da satisfação do desejo: essa “suspensão” preenche-a com uma ausência que é, essa sim, absoluta.
 
Contudo, esta conclusão toma-se perigosíssima: Joana/Divina sente que está prestes a ser devorada pelo Todo. E tem esta derradeira constatação quando se revela a face de quem a viola e compreende o rísivel de tentar encontrar sentidos para uma busca que tem o seu fim no princípio.
 
Por fim, saliente-se que nada disto se pode descobrir na edição portuguesa de Divina. De facto, nem medíocre a tradução chega a ser. E, quando se chega a este nível de qualidade, o problema já não é de tradutor, mas, em específico, de editor: dá a ideia que nem chegou a ler a tradução (como é que se compreende que o texto de contracapa da edição francesa venha publicado, com o mesmo tipo de caracteres, na última página, sem nada o demarcar do corpo do romance?). Francamente, só se pode dar um conselho ao leitor: não gaste dinheiro em vão e compre a edição original.
 
Publicado no Público em 1993
 
 
Titulo: Divina
Autor: Françoise Mallet-Joris
Tradutor: Maria Carlota Alvares da Guerra
Editor: Bertrand Editora
Ano: 1993
259 págs., esg.
 
 



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