terça-feira, 12 de julho de 2016

TONI MORRISON 2

 
 

VIDAS EM ESTILHAÇOS

 
Quando Toni Morrison ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 1993, apareceu escrito algures que a Academia Sueca procurava dessa forma “responder” a certos sectores sociais que a acusavam de ser segregacionista nos seus critérios, pois nunca tinha outorgado este Prémio a uma “mulher negra”. Assim exposto, parecia que o Prémio Nobel tinha sido concedido a esta autora mais para satisfazer uma espécie de “quota” para minorias do que em consequência do mérito intrínseco da sua obra. Ora, nada mais injusto do que retirar esta conclusão: Toni Morrison é, sem sombra de dúvida, um dos maiores escritores afro-americanos de sempre (e estou a recordar-me, por exemplo, de narradores como Richard Wright, Ralph Ellison, James Baldwin e Alice Walker) com uma obra de nível artístico comparável a qualquer outro romancista nobilitado; para fundamentar esta opinião, basta referir que a sua obra revela que Toni Morrison é um dos autores americanos que melhor absorveu o legado literário de William Faulkner (na minha opinião, entre os escritores afro-americanos, só Ernest J. Gaines atingiu neste aspecto um nível próximo).

 
Hoje, Toni Morrison tem um estatuto reconhecido de grande criadora literária, sendo encarada como um clássico “vivo” das letras americanas, e é bem evidente que aquelas “considerações”, escritas por alturas da consagração com o Prémio Nobel, eram absurdamente irrisórias...e segregacionistas. Sendo assim, ainda se torna mais intrigante o percurso desta romancista na edição portuguesa: depois de ter sido publicado Beloved, com o título de Amada, em 1994, numa adaptação de uma tradução brasileira, só em 2009, dezasseis anos depois de receber o Prémio Nobel, é que a edição portuguesa resolveu, de rajada, publicar mais dois outros romances da autora (A Mercy, com o título em português de A Dádiva, e Love), e uma nova tradução da obra anteriormente editada, agora com o título mais correcto de Beloved (note-se que Beloved é o nome de uma personagem e, por conseguinte, não se deve traduzir). Alguém me saberá dizer que outro autor nobilitado levou, recentemente, dezasseis anos para ser traduzido e editado em Portugal? E será que a restante obra de Toni Morrison (estou a recordar-me de Sula, Song of Solomon, Jazz e Paradise) não justificaria uma edição condigna no nosso país?

 
Estas interrogações vêm a propósito da minha recente leitura de Jazz, o romance que Toni Morrison publicou a seguir a receber o Prémio Nobel e que integra, como painel central, um tríptico, com Beloved (essa verdadeira obra-prima da narrativa contemporânea) e Paradise, em que procura compreender o processo sociocultural (e até emocional e afectivo) da população afro-americana nos últimos cento e cinquenta anos.

 
Por comodidade, pode classificar-se Jazz como um “romance histórico”. De facto, situa-se num período decisivo para a “visibilidade” (para citar, de modo indirecto, o título do famosa obra de Ralph Ellison) da minoria afro-americana: estou, naturalmente, a falar dos anos vinte do século passado. Como é sabido, esta década ficou marcada pela “irrupção” pública do tipo de música que dá título a este romance … mas também porque apareceu o “Harlem Renaissance”, o primeiro movimento literário e cultural consistente com origem nesta comunidade. E, em termos geográficos, é também em Harlem que Jazz se situa, esse bairro mítico de Manhattan que contribuiu de forma decisiva, em consequência da sua situação de descriminação social e racial, para a consciencialização cultural e política da população afro-americana.

 
Como outras obras de Toni Morrison, Jazz utiliza uma estratégia narrativa bem peculiar: o romance desenrola-se em torno de uma situação muito violenta que, por esse facto, consegue “iluminar” as personagens que nela estão envolvidas e também aquilo que representam. Neste caso, a obra parte de um “fait-divers” (creio que inventado) em que um cinquentão, Joe Trace, vendedor de cosméticos e casado com Violet, cabeleireira e manicure ao domicílio, resolve, ruído de ciúmes, assassinar a sua amante, uma jovem de dezoito anos, Dorcas, por quem está obsessivamente apaixonado; mas, o que de facto incute “excesso” ao “fait-divers”, é a tentativa de Violet, no funeral da vítima, de a desfigurar com uma navalha, como se quisesse de novo assassinar a amante do marido…

 
Esta descrição ajuda a entender a forma como são arquitectadas, em termos caracteriais, as personagens na obra de Toni Morrison. Em coerência com o substrato longínquo da sua formação religiosa, estas personagens encaram a vida terrena como uma espécie de passagem por um purgatório, só redimível num eventual Além, onde os efeitos do destino pessoal (e colectivo) lhes vão gerando, através de um encadeamento de esperanças goradas e frustrações, de resignações e ténues compensações, um núcleo emocional, tenso e crispado, que, a qualquer momento, por acção de qualquer rastilho (uma paixão mais intensa, por exemplo), poderá explodir, estilhaçando-as, e transformando as suas vidas num brutal e aberrante “fait-divers”. Por isso, Jazz constrói-se (à semelhança do que já acontecia com Beloved) como se a narrativa procurasse perseguir e registar, em constantes “flashbacks”, o percurso destes “estilhaços” e assim revelar como a História, no sentido de destino colectivo, afecta o íntimo das personagens e tinge com cores próprias a sua tragédia individual. O resultado é um retrato vertiginoso da população afro-americana e do seu percurso desde o final da escravatura até à migração maciça para os meios urbanos, em particular para o Norte dos Estados Unidos, (de)mostrando que a História se constrói, não só através da cultura e do destino social da comunidade, mas também com sentimentos, desejos, ciúmes, em suma, de corpos e almas que se afirmam no esplendor da juventude ou se resignam, com maior ou menor serenidade, à decrepitude física e à voragem dos tempos sobre os afectos e os amores.  

 
Até aqui, não se encontra, em Jazz, diferenças substanciais ao modelo de estratégia narrativa que Toni Morrison já tinha utilizado, por exemplo, em Beloved. A substancial inovação, no romance agora em causa, é que a autora utiliza “o olhar” das diversas personagens, na sua tentativa de compreender o sucedido, como se estes fossem “instrumentos musicais” a “recriar” o mesmo tema. De facto, Toni Morrison trata estes “olhares”, diferenciados pela forma como a História condicionou o seu percurso individual, como se fossem apresentações digressivas do mesmo tema, com a sua componente de improvisação, e funcionando em diálogo harmónico com outros “solos” de outras personagens, assentes em novas variações de um tema e a correspondente resposta, transformando a arquitectura do romance numa espécie de “jam session” (é este carácter digressivo e recorrente que dá a esta obra uma dimensão experimental, tornando a sua leitura aparentemente mais trabalhosa e provocando “estranheza” no leitor menos prevenido para esta dimensão de Jazz). Até o final, onde a narrativa procura dar uma visão panorâmica da Cidade, parece a apoteose instrumental com que a maioria dos temas de jazz termina. Além disso, a ambiência social e a tipificação das personagens tornam este romance próximo de um tema de blues urbano.

 
Uma outra constante na obra romanesca de Toni Morrison – e, por consequência, em Jazz – é a sua dimensão trágica. De facto, o efeito conjugado da História e do seu destino pessoal provoca nas personagens uma sensação de inevitabilidade, de que tudo é irreversível no seu percurso: é assim que Joe e Violet Trace encaram o aparecimento, nas suas vidas, de Dorcas e, principalmente, a obsessiva paixão que esta gerou em Joe. Por isso, pode afirmar-se que os romances de Toni Morrison são concebidos como uma forma de “tragédia laica”, em que a História substitui a acção divina, e onde a estrutura clássica se fragmenta (ou estilhaça, para continuar a usar a imagem acima utilizada) em inúmeras linhas narrativas.

 
Por fim, há que realçar o gosto pelo pormenor “esclarecedor”, resultante do invulgar sentido de observação da autora, demonstrando até à saciedade o seu conhecimento do meio afro-americano urbano e conseguindo, com isso, dar acentuada verosimilhança à ambiência social e à caracterização das personagens. Além disso, é inquestionável que o estilo de Toni Morrison, imaginativo, ritmado, colorido e em constante toada lírica, consegue exprimir bem a verdadeira dimensão épica (bem notório no final whitmaniano do romance) destas “pequenas vidas” sufocadas na mediocridade de quotidianos que as colocam sempre à beira do abismo da miséria e do desespero.

 
Publicado na web em 2012.

(Foto da Autora de Timothy Greenfield-Sanders)

  

Título: Jazz
Autor: Toni Morrison
Editor: Vintage
Ano: 2004
256 págs., $ 10,20
 
 




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