quinta-feira, 21 de julho de 2016

JACQUES ABEILLE

 
 
 

A SEDA SENSUAL DA PALAVRA
 
Por vezes, “descobrir” um autor é resultante da constatação de que ele está no centro ou, pelo menos, num ponto de conexão de “afinidades electivas” de criadores (literários, artísticos) que já foram por nós referenciados.
 
Foi assim que, no meio do magma de informação em que vivemos mergulhados, o nome de Jacques Abeille começou a evidenciar-se, nas minhas prospecções, como identificando um narrador muito peculiar.
 
“Descobri” que Jacques Abeille tinha sido amigo chegado de Pierre Molinier (1900-1976), um pintor e fotógrafo surrealista um pouco obscuro (passou toda a sua vida em Bordéus, bem longe dos círculos mundanos de produção artística) e que, como muitos outros de orientação estética semelhante, imbricou profundamente a existência com a sua produção artística. De facto, há muito que este artista era para mim uma figura intrigante e fascinante, não só pela sua vida, mas em particular pela sua obra (iniciada já tarde, com mais de cinquenta anos) obsessivamente erótica e fetichista (raros sãos os seus quadros figurativos, ou, mais tarde, as suas fotos, em que não surjam jogos de “entidades femininas”, vestidas apenas de meias negras e cinto de ligas, constituindo, uma boa parte deles, auto-retratos em que aparece “travestido”), sempre a questionar as fronteiras entre arte e pornografia, que foi muito elogiada por André Breton e que é hoje considerada como percursora da “body art”.
 
Mas foi devido a Bernard Noël, um dos poetas contemporâneos franceses mais interessantes e um intelectual que tem procurado articular uma exigente intervenção cívica com uma contínua reflexão sobre o fenómeno artístico e sobre o efeito social e histórico-literário do acto de escrever, e alguns dos seus textos de louvor e entusiasmo pela narrativa de Jacques Abeille, em particular do seu romance Les Jardins statuaires, que em definitivo fiquei interessado por conhecer a sua obra.
 
Jacques Abeille é, mesmo em França, muito pouco conhecido e referido: há poucas análises da sua obra nos suplementos literários e nos espaços públicos dedicados à literatura em França; é um autor que tem a sua narrativa dispersa em diversas chancelas editoriais, todas elas pequenas; que nunca obteve nenhum importante prémio literário, etc. Creio que o estatuto um pouco marginal de Jacques Abeille no sistema literário francês se deve à sua proximidade ao universo surrealista (ser próximo desta corrente estética e literária não é, hoje, grande referência - e ainda muito menos se aparece com o estatuto de narrador) e ao facto da sua obra ser apontada como obscena e erótica em excesso.
 
 Qualquer uma destas etiquetas (obra surrealista, obra obscena) exigiria, só por si, alguma reflexão no caso da produção literária de Jacques Abeille. No entanto, tem de se concordar que o autor dá muita importância ao elemento erótico, chegando mesmo ao ponto de, com o pseudónimo de Léo Barthet, redigir romances e novelas onde assume abertamente essa componente (e aí, sim, até a componente pornográfica), procurando conjugar os efeitos – a nosso ver, inconciliáveis - da emoção pornográfica com a emoção estética.
 
Pode dizer-se, procurando definir uma geografia literária para Jacques Abeille, que o universo da sua narrativa se encontra confinado (e contaminado) pela produção de Georges Bataille e André Pieyre de Mandiargues (outro esquecido…), por um lado, e de Julien Gracq e Dino Buzzati, por outro. O quadrilátero literário assim delimitado é ocupado por cerca de duas dezenas de obras narrativas (a que se deve acrescentar alguns títulos de colectâneas de poesia e de ensaios, estes últimos nos domínios das artes plásticas e da história da arte, pois Jacques Abeille é também pintor), onde se destaca o conjunto de romances e novelas que o autor intitulou Le Cycle des contrées, composto pelo já referido Les Jardins statuaires (1981), Le Veilleur du jour (1986), En mémoire morte (1992) e Les Carnets de l’explorateur perdu (1993), ou ainda alguns subscritos por Léo Barthet, como Histoire de la bonne (2002) ou Camille (2005).
 
Entre os títulos deste autor, é apontado, de forma consensual, pelos críticos e analistas da sua produção literária, como a sua obra-prima, o seu romance inicial, Les Jardins statuaires. E foi por ele que resolvi iniciar-me na leitura da sua obra.
 
Creio que já se percebeu que uma outra etiqueta, com que é habitual classificar-se a obra de Jacques Abeille, é o de “literatura fantástica”: de facto, como sucede neste tipo de literatura, o autor procura, em Les Jardins statuaires, criar um universo próprio, autónomo. Porém, a originalidade começa logo na forma como o faz: depois de uma página inicial onde se explana uma reflexão sobre a forma do espaço (uma árvore que expande os seus ramos pelo céu), aparece, de imediato, um viajante/narrador que se encontra à entrada do “país dos jardins das estátuas”…; nada se expõe sobre a forma como lá chegou, de onde veio, porque motivos desconhece este país e os mundos limítrofes - simplesmente “aparece”. Depois, o autor vai desenvolvendo e construindo Les Jardins statuaires em constante “trompe l’oeil” entre o universo reconhecível pelo leitor e o universo específico da obra, como se esta se procurasse a pouco e pouco libertar e autonomizar. No fundo, parece que o próprio romance, no seu desenrolar, pretende espelhar o seu esforço titânico para criar um universo próprio.
 
Não vou, como é óbvio, nem perto nem de longe, desvendar a trama de Les Jardins statuaires. Só quero referir, na coerência do que foi exposto no parágrafo anterior - e para aguçar o apetite do leitor pela ambiência da obra -, que o viajante/narrador, numa primeira parte, vai introduzindo-se cada vez mais no interior deste país “gerador de estátuas”, revelando não só a estranha configuração espacial desta terra, mas também a peculiar organização social dos seus habitantes, assim como os seus invulgares hábitos; na segunda parte, o percurso do viajante/narrador é em sentido inverso, deslocando-se para as fronteiras deste “país” e desvendando como a sua relativa harmonia se encontra ameaçada por “turbas bárbaras” que, com outros valores, poderão desfazer a frágil imobilidade desta organização social.
 
Assim, o leitor não só percebe que os “jardins” (com os seus áreas de produção, os seus armazéns, as suas habitações - em particular, os gineceus, onde as mulheres vivem em clausura e afastadas da “criação” de estátuas) estão no centro desta organização social, como descobre que existem outras estruturas periféricas e complementares, com funções de “descompressão” (é o caso das estalagens, com os seus “patrões” e as suas “criadas”) ou de registo e memória (é o caso dos homens-livros e as respectivas “bibliotecas”), etc.; e, por fim, como a própria sociedade se modela em função do milagre da “criação” das estátuas e da sua transcendente beleza ou, pelo contrário, das suas doenças e das suas perigosas aberrações…
 
Como se pode perceber por aquilo que já foi referenciado, pouco ou quase nada se encontra de descrições eróticas ou pornográficas em Les Jardins statuaires. Mas, de uma forma estranha, perpassa nas suas páginas uma constante sensualidade que contagia toda a narrativa (em particular, as descrições sobre a forma como se vão gerando as estátuas e o seu aparecimento no granuloso chão dos jardins). E é neste aspecto que se torna evidente a magnífica arte narrativa de Jacques Abeille: de facto, deriva do seu próprio estilo a sensualidade constante de toda a sua obra - mais do que das suas descrições eróticas ou pornográficas.
 
Porém, talvez seja também resultante desta obsessão descritiva o principal defeito, a nosso ver, de Les Jardins statuaires: a sua dimensão. Por vezes, a necessidade de Jacques Abeille em revelar de forma exaustiva este país e a sua ambiência peculiar origina que o romance se torne, aqui e ali, um pouco repetitivo, justificando-se, por razões de economia narrativa, algum trabalho editorial.
 
Publicado na web em 2008.
 
 
Autor: Jacques Abeille
Título: Les Jardins statuaires
Editor: Joëlle Losfeld
Ano: 2004
398 págs., 23,00 €
 
 
        
 


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