quarta-feira, 20 de julho de 2016

JOHN KENNEDY TOOLE

 
 
UMA PUNIÇÃO DA INFÂNCIA
 
As circunstâncias que envolvem o caso literário de John Kennedy Toole transformam-no, pela sua radicalidade, num facto sintomático, até em termos sociais, de um país como os Estados Unidos. Como se poderá ler na introdução que acompanha a recente edição portuguesa de A Bíblia de Neón, este autor sulista, nascido em New Orleans no final da década de trinta, tentou, durante vários anos e em diversas editoras, publicar um romance, A Confederacy of Dunces, que escreveu durante a tropa em Porto Rico. Totalmente desanimado com as rejeições sucessivas, resolveu, mergulhado no mais profundo desespero, por fim a vida. É a sua mãe, convencida do mérito do livro e do talento do filho, que vai continuar a saga de o tentar publicar. Por fim, consegue persuadir um importante escritor sulista, Walker Percy, a lê-lo, e este, extasiado, resolve propôr a sua impressão na editora da universidade onde ensina. É assim que, em 1981, vinte anos depois de ter sido escrito, o romance é galardoado com o mais famoso prémio literário americano, o Pulitzer.
 
A Confederacy of Dunces, escrito em registos estilísticos que vão desde a mais pura coloquialidade a uma retórica arcaica e desajustada, é uma truculenta e barroca sátira sobre as dificuldades de comunicabilidade, onde uma grotesca personagem, o obeso Ignatius J. Rilley, que sempre tinha vivido na dependência de uma mãe absorvente, procura interpretar, munido com uma ética de todo incongruente, um conjunto de peripécias cada vez mais absurdas que lhe sucedem. O resultado é um retrato alucinado e pícaro da sociedade sulista, em particular dessa cidade que mais se assemelha a um cenário de filme: New Orleans.
 
Parecia, no entanto, que John Kennedy Toole era mais um caso de um escritor de um só livro. Porém, a sua infatigável mãe resolve procurar, no espólio do filho, alguma coisa mais com interesse literário e descobre um romance que ele tinha escrito na adolescência: aparece, desta forma, A Bíblia de Néon, o romance que agora foi traduzido.
 
A Bíblia de Néon é, como é evidente, uma obra de formação e, por conseguinte, bem longe da versatilidade e originalidade de A Confederacy of Dunces. O livro narra a infância do filho único de uma família, vivendo numa pequena cidade de província do Sul dos Estados Unidos, com enormes dificuldades financeiras, esmagada pela recessão económica dos anos trinta e pelas “lesões” que a II Guerra Mundial provocou na rectaguarda americana. Escrito em frases curtas e concisas, eminentemente descritivas e conotativas, e, dessa forma, compensando (ou talvez não) a insuportabilidade trágica das situações, A Bíblia de Néon corresponde no seu estilo e na sua estrutura, de um modo quase tipificado, ao “mainstream” da literatura americana - o que já não é pequeno mérito, quando se tem em conta a idade com que o escritor redigiu este romance (apenas dezasseis anos…).
 
Por isso, provavelmente, o interesse maior de A Bíblia de Néon reside no seu efeito exorcista. De facto, parece que o autor sente necessidade, pela escrita e pela ficção, de “eliminar” a sua infância. Na sua estrutura cíclica, o romance começa e acaba com a fuga da personagem principal (mais uma na literatura americana), depois da total devastação dos lugares e dos afectos da infância: a figura violenta e desesperada do pai morre na guerra em Itália, a mãe, incapaz de se recuperar desta perca, enlouquece e extingue-se, esvaida em sangue, a tia Mae, com a sua sexualidade exuberante, compensadora das suas frustrações financeiras e “artísticas” e reveladora da hipocrisia de uma sociedade puritana, desaparece, prostituindo-se numa relação medíocre e arrastada pela muito efémera hipótese de conseguir, por fim, satisfazer as ambições da sua vida.
 
O desaparecimento desta tia - que personalizava, apesar de tudo, a possibilidade da alegria e do prazer - e a tentativa de eliminação da sua inofensiva mãe são golpes insustentáveis para a personagem principal: à sua frente só uma sociedade castrante e dominadora, encabeçada pelas figuras sinistras dos professores e do pregador. O inevitável final de A Bíblia de Néon toma evidente a necessidade compulsiva que levou John Kennedy Toole à sua elaboração: segregar a amargura venenosa que lhe foram depositando na alma e renascer.
 
Publicado no Público em 1992.
 
 
Título: A Bíblia de Néon
Autor: John Kennedy Toole
Tradutor: Ana Barradas
Editor: Terramar
Ano: 1992
198 págs., € 7,93
 



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