terça-feira, 5 de julho de 2016

ELIZABETH BOWEN

 
 
 

A ORDEM AFECTIVA
 
No final dos anos vinte, revelou-se em Inglaterra um conjunto significativo de escritoras (Ivy Compton-Burnett, Rebecca West, Rosamond Lehmann e Elizabeth Bowen) que, de forma diversa, vai contribuir para uma inflexão na produção romanesca, ao abandonar certas técnicas narrativas mais “experimentais” - características do trabalho literário da geração anterior, como, por exemplo e ainda dentro do universo feminino, o de Virginia Woolf -, para, no quadro do romance realista, dar-lhe um registo mais intimista, centrando a sua temática nos conflitos e pulsões que aparecem dentro da instituição familiar.
 
Talvez, entre elas, a que mais próximo ficou da linearidade diegética e da omnisciência do narrador, típicas das construções romanescas tradicionais, foi a irlandesa Elizabeth Bowen. Porém, a coesão temática, a argúcia e a complexidade no tratamento psicológico das personagens, a constante utilização de um humor subtil, como forma de contenção à propensão lírica, dão uma inegável qualidade literária à sua obra. Do seu conjunto, que se diversifica pelo romance, a colectânea de contos e o ensaio, destacam-se os romances publicados antes da II Guerra Mundial, The House in Paris e o que agora foi traduzido e editado com o título de A Morte do Coração.
 
Como é habitual na ficção de Elizabeth Bowen, a personagem central desta obra é uma figura feminina com uma sensibilidade desajustada aos comportamentos sociais da alta burguesia inglesa. Neste caso, é uma adolescente, Portia Quayne, oriunda de uma família com um modo de vida incaracterístico e marginalizado em relação aos valores da sociedade eduardiana; quando fica órfã, vai viver com a família de um meio-irmão, mais velho, que nunca perdoou ao pai o abandono da mãe e que, por isso mesmo, se sente incomodado com a presença imposta da irmã, filha do segundo casamento.
 
A necessidade de afecto e de ser reconhecida por este mundo, antevisto como perfeito, leva Portia Quayne a ser particularmente atenta, descrevendo num diário pessoal, com a objectividade resultante de lhe ser “exterior”, o modo de ser daqueles que a rodeiam. Porém, esse olhar “transcrito”, quando descoberto pela sua cunhada, Anne, que o lê de um modo furtivo, revela-se insuportável para os seus familiares e amigos: aquela sociedade não resiste a um olhar “exterior”, porque este irá confrontá-la com a imagem que faz de si mesma, provocando nela nebulosidades e perturbações.
 
A Morte do Coração parece, portanto, centrar-se no tema trivial da “educação sentimental” de uma adolescente e das dificuldades da sua integração no universo adulto. No entanto, a forma como é tratado este tema revela, ao mesmo tempo, um dos limites e uma das características fascinantes da obra de Elizabeth Bowen: é que os comportamentos sofisticadamente hipócritas destas personagens sâo encarados como consequências defensivas das tensões provocadas pelos mecanismos sociais e, por isso, a “realidade” com que qualquer adolescente terá obrigatoriamente de se confrontar.
 
De facto, não cabem na sociedade institucional as intensidades afectivas: é o conhecimento “experimentado” desta certeza que determina o comportamento, repleto de “esquecimentos” e “fugas”, da cunhada de Portia Quayne. Por isso, a personagem principal vai perceber que, se os afectos, e até o próprio desejo, a impelirem a rebelar-se contra os códigos da sociabilidade, irá ter, de forma inevitável, que caminhar por uma “via sacra” que culminará numa desagregação emocional (bem caracterizada pela figura de Eddie, o rapaz por quem Portia Quayne se apaixona) ou numa situação de repúdio social que originará, em contrapartida, um maior desejo de integração e de submissão. É esta “via sacra” que Portia Quayne descobre nas suas férias em Seale-on-Sea, quando o seu amado corresponde as solicitações fáceis de uma sua amiga, ou, mais tarde, quando percebe que este comenta, na mais natural das cumplicidades, o seu “diário” com os seus familiares.
 
É evidente que esta “ordem afectiva” está muito confinada a um quadro de valores sociais que Elizabeth Bowen parece encarar como imutáveis e que, contudo, a II Guerra Mundial destroçaria por completo (o que justificava, eventualmente, uma introdução situante da obra na edição portuguesa). Porém, a visão lúcida e pessimista que A Morte do Coração transmite da impossibilidade de afirmação dos afectos no exterior dos circuitos e códigos sociais mantem-se, como não poderia deixar de ser, ainda de todo actual.
 
Publicado no Público em 1993.
 
 
Título: A Morte Do Coração
Autor: Elizabeth Bowen
Tradutor: Isabel Braga
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1993
373 págs.,€ 13,75
 
 


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