segunda-feira, 18 de junho de 2018

YUKIO MISHIMA 2

 
 
 

UMA CEGA VERTIGEM
 
É indiscutível que, para o leitor ocidental, e mesmo para aquele tem maior formação cultural e literária, é difícil inteligir, em todas as suas significações e referências, a literatura japonesa, dada a especificidade e a idiossincrasia da cultura que lhe está subjacente.
 
Por isso, um dos inegáveis méritos de autores como Yukio Mishima, Junichirô Tanizaki ou Shusaku Endo é, pelo seu conhecimento da cultura ocidental, permitirem-nos estabelecer pontos de confluência entre culturas, e daí facilitar-nos a compreensão do pensamento oriental: talvez que grande parte da popularidade destes autores no Ocidente advenha disto mesmo (saliente-se, contudo, que Tanizaki nunca foi traduzido para português, mas é bem divulgado na Europa e nos Estados Unidos).
 
O Templo da Aurora, o romance agora traduzido de Yukio Mishima, é a terceira parte de uma vasta tetralogia, O Mar da Fertilidade, a que o autor se dedicou nos últimos anos da sua vida, antes de se suicidar, em 1970, procedendo a um espectacular e politicamente significativo “seppuku” ritual. Esta obra, construída num rigor dramático clássico, desenvolve-se em redor das diversas transmigrações e reencarnações de um jovem por quem a personagem principal, Honda, vai cumprindo um destino de fidelidade(s) amorosa(s). Aproveitando essas reencarnações, que dão unidade estrutural à obra, o autor vai procedendo a uma longa reflexão sobre a filosofia budista, confrontando-se com as suas inúmeras ramificações éticas e metafísicas.
 
Mas o que se realça em O Templo da Aurora é as excepcionais capacidades estilísticas e a originalidade de um projecto estético que deram a Yukio Mishima um lugar único nas letras contemporâneas. A paixão de Honda pela reencarnação de Quioáqui, a princesa tailandesa Ing Chan, e uma deslocação à cidade santa de Benares, na margem do rio Ganges, permitem-nos desvendar a fantasmagoria erótica e metafísica que atravessa toda a obra deste autor.
 
De acordo com uma tradição oriental, e com particular incidência no pensamento budista, Mishima identifica o sublime estético com a Natureza. Daí que haja, em toda a sua produção literária, um esforço árduo de referenciação, de mimésis, que determina, por um lado, uma escrita que estilisticamente ambiciona atingir o “corpóreo”, o físico, e, por outro, a perspectivação da actividade artística como um inevitável “crepúsculo”, o possível fogacho róseo antes da noite absoluta, dada a impossibilidade daquela em “ser” a própria realidade.
 
Essa “ferida estilística”, bem visível em O Templo da Aurora, explica, pelo menos em parte, certas obsessões de Mishima, como, por exemplo, considerar o suicídio como o projecto estético mais redentor, aquele que, após um percurso de renúncias e confrontos preparatórios, culmina toda uma vida. E é essa necessidade de dissolução da consciência através de uma absoluta identificação com a Natureza, que leva a Mishima a procurar no erotismo um “êxtase” prenunciatório da morte.
 
O erotismo, para Mishima, só existe com a culpabilização, pois que é a corrupção que transcende o amor, da mesma forma que é a doença e a morte que dá sentido eterno à Natureza. Honda, a personagem principal de O Templo da Aurora, percebe friamente quais os limites e a grandeza da paixão “voyeurista” que sente pela princesa Ing Chan: o “voyeurismo” permite transportá-lo até ao objecto amado, sem, contudo, abandonar a consciência da percepção; é a “perversão” do “ver proibido” que lhe fundamenta o amor, mas também é esse “ver proibido” que lhe interdiz o êxtase que consagraria esse mesmo amor.
 
O Templo da Aurora, como a restante obra de Mishima, na sua intrigante proximidade com a de Bataille, é dominado pelo mesmo impulso lírico e passional que arrastou o seu autor num turbilhão destruidor. E o maior elogio que se pode fazer à sua obra é afirmar que o leitor de facto pressente, perante ela, um sedutor perigo e que o projecto estético que lhe está subjacente é ainda um “crepúsculo” suficientemente intenso para nos poder cegar.
 
Publicado no Expresso em 1987.
 
 
 
Título: O Templo da Aurora
Autor: Yukio Mishima
Tradução: Luisa Mira e Castro
Editor: Presença
Ano: 1987261 págs., € 9,82
 

 
 
 
 



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