UMA CEGA VERTIGEM
É
indiscutível que, para o leitor ocidental, e mesmo para aquele tem maior
formação cultural e literária, é difícil inteligir, em todas as suas
significações e referências, a literatura japonesa, dada a especificidade e a idiossincrasia
da cultura que lhe está subjacente.
Por
isso, um dos inegáveis méritos de autores como Yukio Mishima, Junichirô Tanizaki
ou Shusaku Endo é, pelo seu conhecimento da cultura ocidental, permitirem-nos
estabelecer pontos de confluência entre culturas, e daí facilitar-nos a compreensão
do pensamento oriental: talvez que grande parte da popularidade destes autores
no Ocidente advenha disto mesmo (saliente-se, contudo, que Tanizaki nunca foi traduzido
para português, mas é bem divulgado na Europa e nos Estados Unidos).
O
Templo da Aurora, o romance agora traduzido de Yukio Mishima, é
a terceira parte de uma vasta tetralogia, O Mar da Fertilidade, a que o autor
se dedicou nos últimos anos da sua vida, antes de se suicidar, em 1970,
procedendo a um espectacular e politicamente significativo “seppuku” ritual. Esta
obra, construída num rigor dramático clássico, desenvolve-se em redor das diversas
transmigrações e reencarnações de um jovem por quem a personagem principal,
Honda, vai cumprindo um destino de fidelidade(s) amorosa(s). Aproveitando essas
reencarnações, que dão unidade estrutural à obra, o autor vai procedendo a uma
longa reflexão sobre a filosofia budista, confrontando-se com as suas inúmeras
ramificações éticas e metafísicas.
Mas o
que se realça em O Templo da Aurora é as excepcionais capacidades estilísticas e
a originalidade de um projecto estético que deram a Yukio Mishima um lugar único
nas letras contemporâneas. A paixão de Honda pela reencarnação de Quioáqui, a
princesa tailandesa Ing Chan, e uma deslocação à cidade santa de Benares, na
margem do rio Ganges, permitem-nos desvendar a fantasmagoria erótica e metafísica
que atravessa toda a obra deste autor.
De
acordo com uma tradição oriental, e com particular incidência no pensamento
budista, Mishima identifica o sublime estético com a Natureza. Daí que haja, em
toda a sua produção literária, um esforço árduo de referenciação, de mimésis, que
determina, por um lado, uma escrita que estilisticamente ambiciona atingir o “corpóreo”,
o físico, e, por outro, a perspectivação da actividade artística como um
inevitável “crepúsculo”, o possível fogacho róseo antes da noite absoluta, dada
a impossibilidade daquela em “ser” a própria realidade.
Essa “ferida
estilística”, bem visível em O Templo da Aurora, explica, pelo
menos em parte, certas obsessões de Mishima, como, por exemplo, considerar o
suicídio como o projecto estético mais redentor, aquele que, após um percurso
de renúncias e confrontos preparatórios, culmina toda uma vida. E é essa necessidade
de dissolução da consciência através de uma absoluta identificação com a
Natureza, que leva a Mishima a procurar no erotismo um “êxtase” prenunciatório
da morte.
O
Templo da Aurora, como a restante obra de Mishima, na sua
intrigante proximidade com a de Bataille, é dominado pelo mesmo impulso lírico e
passional que arrastou o seu autor num turbilhão destruidor. E o maior elogio
que se pode fazer à sua obra é afirmar que o leitor de facto pressente, perante
ela, um sedutor perigo e que o projecto estético que lhe está subjacente é
ainda um “crepúsculo” suficientemente intenso para nos poder cegar.
Publicado no Expresso em 1987.
Título: O Templo da Aurora
Autor: Yukio Mishima
Tradução: Luisa Mira e Castro
Editor: Presença
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