segunda-feira, 18 de junho de 2018

GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

 


RASTOS DE UM COMETA

 
É consensual afirmar que o contributo fundamental da obra de Gabriel García Márquez (e, de uma forma ou outra, da de grande número de escritores latino-americanos do pós-indigenismo) para a literatura contemporânea foi o de complexificar as fronteiras, até aí muito definidas, entre real e imaginário. Chega-se mesmo a considerar que a sua obra estabelece um novo realismo em que aquelas fronteiras estariam abolidas, uma vez que se revelariam desajustadas para a compreensão de uma realidade (a sul-americana) onde as presenças da religiosidade, da superstição, da fantasmagoria, do devaneio lírico ou pueril, etc., são tão “concretas” como a escassez de meios de subsistência para a maioria da população.

 
Grande parte dos contos que compõem A Incrível e Triste História da Cândida Eréndira e da Sua Avó Desalmada, na sua estrutura muito simples e linear, justificam, de facto, esta caracterização: a acção desencadeia-se com a presença de um elemento do imaginário, assumido como real, que vem transformar ou prenunciar (e este efeito de “prenúncio” é o único resíduo de fantástico que permanece neste elemento) mutações na vida dos heróis ou da comunidade.

 
Esta estrutura, mais tipificada em “Um Senhor Muito Velho Com Umas Asas Enormes” e em “O Mar do Tempo Perdido”, sofre, no entanto, variantes de conto para conto. Assim, “A Última Viagem do Navio Fantasma” narra a marginalização que provoca a assunção individual de um elemento do imaginário como real e o “perigo” que, ironicamente, pode existir na sua desesperada afirmação no seio da comunidade; “O Afogado Mais Bonito do Mundo” reflecte como um elemento real pode cristalizar um imaginário colectivo, em particular se é motivado pela frustração (neste caso, sexual e afectiva) ou pela carência; “Norte Constante Para Alem do Amor” evidencia como o desejo simula no real um elemento do imaginário, tornando-se, por conseguinte, na sua essência, inconcretizável e mortífero.

 
Um outro aspecto característico da obra de Gabriel García Márquez bem exemplificado nesta colectânea, principalmente em “Norte Constante Para Além do Amor’, “Blacaman o Bom, Vendedor de Milagres” e na novela curta que lhe dá titulo, é a dimensão simbólica das suas personagens. Este simbolismo, enraizado na cultura popular ou nas reminiscências com que esta reformula a sua história, alude de um modo constante à situação neo-colonial hoje existente nas Caraíbas ou em todo o continente sul-americano. No entanto, nunca se pode encarar como único nível de leitura esta conotação política, uma vez que o autor procura dar às personagens uma significação que, em complementaridade, ascenda às categorias universais.

 
A inserção do imaginário no real e a significação polissémica das personagens são servidas nestes contos, como é comum na obra de Gabriel García Márquez, por um descritivismo barroco, sensual, de coloração surrealizante, que dá uma ambiência exótica a estas histórias e, ao mesmo tempo, facilita que sejam encaradas num registo em que tudo parece natural.

 
Convém salientar, no entanto, que estes contos, na sua maioria de produção coeva à epopeia de Macondo, dão a ideia de serem “rastos” (e restos) da passagem de um imenso cometa. Nesse sentido, esta colectânea representa o fim de um ciclo e, paralelamente, patamar estilístico e temático de outro que prepara o romance O Outono do Patriarca.

 
Por outro lado, descontextualizados, estes contos prenunciam, apesar das intenções continuamente expressas pelo autor, uma dilaceração da noção de realismo, abrindo caminho a uma ficção que, liberta de uma exigência constrangente a uma referência exterior determinada, cada vez mais alcança o valor paradigmático do mito.

 

Publicado no Público em 1990.

 

Titulo: A Incrível e Triste História da Cândida Erendira e da Sua Avó Desalmada
Autor: Gabriel García Márquez
Tradutor: Pedro Tamen
Editor: Quetzal Editores
Ano: 1990
135 págs. , esg.
 
 

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