sábado, 23 de junho de 2018

JOYCE CAROL OATES

 
 
 

SER FIEL

  

A literatura romanesca norte-americana, em conexão com uma realidade social e cultural tão elasticamente diversificada e contrastante, é, como se costuma dizer, mais a literatura de um “continente” do que de uma nacionalidade. Parece-nos, por isso, e para lá de todos os “pânicos de imperialismo”, que não poderia ser senão relevante o papel que esta teve, em vários momentos, na produção literária deste século.

 
Ora, devido a um conjunto de romancistas que se evidenciaram durante as décadas de sessenta e setenta, esta literatura, com a de expressão alemã, está de novo a afirmar-se com uma das mais interessantes produções da actualidade. Isto já foi várias vezes escrito na imprensa portuguesa, e espera-se apenas que, face a esta unanimidade e a uma crescente curiosidade dos leitores, o movimento editorial português consiga corresponder: para quando a tradução de obras de, por exemplo, e excluindo os poucos autores de quem já foram traduzidas algumas obras, John Hawkes, James Purdy, John Barth, Joseph Heller, Thomas Pynchon, Donald Barthelme, Richard Brautigan, Ishmael Reed ou John Gardner?

 
Joyce Carol Ostes é um dos recentes escritores norte-americanos que o leitor português tem o privilégio de conhecer (a Livraria Civilização Editora, já há alguns anos, editou um dos romances mais importantes da autora, Eles). Esta escritora é um caso excepcional de produção prolífera (ao ponto de alguns críticos a considerarem, por esta razão, como uma espécie de Dickens moderno), visto que em pouco mais de vinte anos, publicou cerca de quatorze romances, mais de uma dúzia de recolhas de novelas e “short-stories”, várias obras de teatro, de poesia, de anáilise literária.

 
Semelhante carácter prolífero da obra de Joyce Carol Oates responde a uma exigência de “registo em extensão”, como se o conhecimento da(s) realidade(s) e a capacidade de eventual intervenção da escrita sobre esta(s) estivesse apenas na sua representação. Os romances (como Them, Bellefleur ou A Bloodsmoor Romance) e as novelas desta escritora debruçam-se assim sobre universos tão distintos como os dramas familiares e afectivos nos meios universitários e intelectuais ou as inadaptações e conflitos da população operária vivendo nas áreas periurbanas de Detroit. É, nesse sentido, que a crítica americana considera que Joyce Carol Oates é um dos escritores que mais contribuiu para o renascimento de um certo realismo, obsessivamente analítico, que já é conhecido como “novo realismo americano”.

 
Esta premência do registo em extensão, além de ser questionável a sua pertinência estética, sobrepõe-se, na obra de Joyce Carol Oates, a outras problemáticas do trabalho ficcional, reflectindo-se em particular numa débil inquietação estilística, que explica, em parte, o carácter desigual da sua produção. Mas, por outro lado, existe nesta autora uma nítida consciência da especificidade deste tipo de trabalho: daí que seja realçante a busca de novas soluções de construção narrativa, principalmente nas suas novelas e “short-stories”, formas que são mais maleáveis à experimentação.
 

Casamentos e Infidelidades, a colectânea de novelas agora publicada, é, mesmo para quem já conhece algumas obras de Joyce Carol Oates, uma interessante revelação.

 
Entenda-se, antes do mais, o título. Esta colectânea, como naturalmente se poderia deduzir, não se debruça sobre a temática das relações conjugais. O termo “casamento” expressa a “fidelidade” comportamental em relação ao que é sentido, e, portanto, sobressai, como nuclear problemática existencial nestas histórias, a das correspondências afectivas, isto é, a das dificuldades sociais e éticas em adequar o percurso pessoal com as exigências da comunicabilidade.

 
É, por isso, muito mais lata a sua área temática. E, se continua a observar-se as mesmas características já referidas em algumas das “short-stories” coligidas, há, no entanto, na generalidade, um brilhantismo de escrita e um cuidado estilístico a que Joyce Carol Oates não nos tinha acostumado. Por outro lado, em algumas histórias experimentam-se originais construções narrativas que se integram funcionalmente na situação dramática (é o caso, por exemplo, de “A Volta do Parafuso”, de “A Espiral” e de “29 Invenções”).

 
Mas onde esta obra acolhe o nosso maior entusiasmo é na novela “Os Mortos”, pela trágica beleza com que consegue transmitir a intensidade do vivido, ou então em histórias que, libertando-se das condicionantes de um excessivo circunstancialismo, se esquivam aos paradigmas da representação realista, perturbando, assim, as referências adquiridas pelo leitor (é o caso de “Música Nocturna”), ou que chegam a aflorar o equilíbrio dos arquétipos e se tornam, por isso, inesquecíveis: leia-se os exemplos de “Casamento Sagrado” ou do extraordinário “Razão de Viver” (dois indivíduos que se perseguem até à morte, reflectindo sobre a sua condição, nunca se sabendo quem é o perseguido ou o perseguidor, nem porquê, nem qual dos dois morre) que nos lembra o despojamento das situações beckettianas.

 

Publicado no Expresso em 1984.

(Foto da Autora de Geraint Lewis)

 

 
Título: Casamentos e Infidelidades
Autor: Joyce Carol Oates
Tradutor: Maria Filomena Duarte
Editor: Livraria Bertrand
Ano: 1984
440 págs., esg.
 
 

 




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