SER FIEL
A
literatura romanesca norte-americana, em conexão com uma realidade social e
cultural tão elasticamente diversificada e contrastante, é, como se costuma
dizer, mais a literatura de um “continente” do que de uma nacionalidade. Parece-nos,
por isso, e para lá de todos os “pânicos de imperialismo”, que não poderia ser
senão relevante o papel que esta teve, em vários momentos, na produção literária
deste século.
Ora,
devido a um conjunto de romancistas que se evidenciaram durante as décadas de
sessenta e setenta, esta literatura, com a de expressão alemã, está de novo a
afirmar-se com uma das mais interessantes produções da actualidade. Isto já foi
várias vezes escrito na imprensa portuguesa, e espera-se apenas que, face a
esta unanimidade e a uma crescente curiosidade dos leitores, o movimento
editorial português consiga corresponder: para quando a tradução de obras de,
por exemplo, e excluindo os poucos autores de quem já foram traduzidas algumas
obras, John Hawkes, James Purdy, John Barth, Joseph Heller, Thomas Pynchon,
Donald Barthelme, Richard Brautigan, Ishmael Reed ou John Gardner?
Joyce
Carol Ostes é um dos recentes escritores norte-americanos que o leitor português
tem o privilégio de conhecer (a Livraria Civilização Editora, já há alguns anos,
editou um dos romances mais importantes da autora, Eles). Esta escritora é
um caso excepcional de produção prolífera (ao ponto de alguns críticos a considerarem,
por esta razão, como uma espécie de Dickens moderno), visto que em pouco mais
de vinte anos, publicou cerca de quatorze romances, mais de uma dúzia de
recolhas de novelas e “short-stories”, várias obras de teatro, de poesia, de anáilise
literária.
Semelhante
carácter prolífero da obra de Joyce Carol Oates responde a uma exigência de “registo
em extensão”, como se o conhecimento da(s) realidade(s) e a capacidade de eventual
intervenção da escrita sobre esta(s) estivesse apenas na sua representação. Os
romances (como Them, Bellefleur ou A Bloodsmoor Romance) e
as novelas desta escritora debruçam-se assim sobre universos tão distintos como
os dramas familiares e afectivos nos meios universitários e intelectuais ou as
inadaptações e conflitos da população operária vivendo nas áreas periurbanas de
Detroit. É, nesse sentido, que a crítica americana considera que Joyce Carol
Oates é um dos escritores que mais contribuiu para o renascimento de um certo
realismo, obsessivamente analítico, que já é conhecido como “novo realismo
americano”.
Esta
premência do registo em extensão, além de ser questionável a sua pertinência
estética, sobrepõe-se, na obra de Joyce Carol Oates, a outras problemáticas do
trabalho ficcional, reflectindo-se em particular numa débil inquietação estilística,
que explica, em parte, o carácter desigual da sua produção. Mas, por outro
lado, existe nesta autora uma nítida consciência da especificidade deste tipo
de trabalho: daí que seja realçante a busca de novas soluções de construção
narrativa, principalmente nas suas novelas e “short-stories”, formas que são
mais maleáveis à experimentação.
Casamentos
e Infidelidades, a colectânea de novelas agora publicada, é,
mesmo para quem já conhece algumas obras de Joyce Carol Oates, uma interessante
revelação.
Entenda-se,
antes do mais, o título. Esta colectânea, como naturalmente se poderia deduzir,
não se debruça sobre a temática das relações conjugais. O termo “casamento”
expressa a “fidelidade” comportamental em relação ao que é sentido, e,
portanto, sobressai, como nuclear problemática existencial nestas histórias, a
das correspondências afectivas, isto é, a das dificuldades sociais e éticas em
adequar o percurso pessoal com as exigências da comunicabilidade.
É, por
isso, muito mais lata a sua área temática. E, se continua a observar-se as mesmas
características já referidas em algumas das “short-stories” coligidas, há, no
entanto, na generalidade, um brilhantismo de escrita e um cuidado estilístico a
que Joyce Carol Oates não nos tinha acostumado. Por outro lado, em algumas histórias
experimentam-se originais construções narrativas que se integram funcionalmente
na situação dramática (é o caso, por exemplo, de “A Volta do Parafuso”, de “A
Espiral” e de “29 Invenções”).
Mas
onde esta obra acolhe o nosso maior entusiasmo é na novela “Os Mortos”, pela trágica
beleza com que consegue transmitir a intensidade do vivido, ou então em histórias
que, libertando-se das condicionantes de um excessivo circunstancialismo, se
esquivam aos paradigmas da representação realista, perturbando, assim, as referências
adquiridas pelo leitor (é o caso de “Música Nocturna”), ou que chegam a aflorar
o equilíbrio dos arquétipos e se tornam, por isso, inesquecíveis: leia-se os
exemplos de “Casamento Sagrado” ou do extraordinário “Razão de Viver” (dois
indivíduos que se perseguem até à morte, reflectindo sobre a sua condição,
nunca se sabendo quem é o perseguido ou o perseguidor, nem porquê, nem qual dos
dois morre) que nos lembra o despojamento das situações beckettianas.
Publicado no Expresso em 1984.
(Foto da Autora de Geraint Lewis)
(Foto da Autora de Geraint Lewis)
Título: Casamentos e Infidelidades
Autor: Joyce Carol Oates
Tradutor: Maria Filomena Duarte
Editor: Livraria Bertrand
Ano: 1984
440 págs., esg.
Sem comentários:
Enviar um comentário