terça-feira, 5 de junho de 2018

KNUT HAMSUN

 
 
 

A LITERATURA COMO VERDADE E EQUÍVOCO
  
Num jornal norueguês, em Maio de 1945, apareceu o seguinte texto necrológico: “Não sou digno de falar de Adolf Hitler, e a sua vida e sua obra de modo algum convidam a qualquer comoção sentimental. Foi um guerreiro, um pregador do evangelho dos direitos de todas as nações. Foi uma figura de reformista de primeiríssima ordem e o seu destino histórico deveu-se a que actuava numa época da mais vil brutalidade, a qual, por fim, o derrubou. Assim deve encarar Adolf Hitler qualquer europeu ocidental, e nós, seus adeptos mais próximos, inclinamos a nossa cabeça na hora da sua morte”. Quem subscrevia esta prosa não era nenhum segundo comandante da barca do nacional-socialismo (esses, pelo contrário, procuravam escapulir-se por entre a poeira levantada can o desmoronamento da Alemanha), mas a figura mais prestigiada, com Henrik Ibsen, das letras norueguesas, a mesma que, cinco anos antes, também tinha aclamado a ocupação do seu país pelas tropas nazis: Knut Hamsun.
 
Os mais fervorosos entusiastas da sua obra (e alguns eram irredutíveis anti-nazis, como Thomas Mann, André Gide ou Henry Miller) ficaram perplexos com a opção política de Knut Hamsun. Como era possível que este autor, que tinha escrito um dos mais originais e fascinantes romances dos finais do séc. XIX (A Fome, publicado pela primeira vez há precisamente cem anos), Prémio Nobel da Literatura de 1920, fosse um empolgado adepto do nazismo?
 
Como tudo, talvez este catastrófico equívoco se comece a entender pela infância. Knut Hamsun viveu-a numa paisagem primordial: entre mar, ilhas, gelo e florestas. Filho de camponeses pobres, com seis irmãos, foi enviado, ainda criança, para casa de um tio, vivendo nas árticas ilhas Lofoten. Foi este fanático pietista que o ensinou a ler, pela Bíblia, e a escrever, transcrevendo orações. Daquela paisagem elementar e desta educação, de religiosidade obscura, ficar-lhe-ão para sempre um acentuado panteísmo e o sentimento que, perante a Natureza, o homem está irremediavelmente solitário e despojado. Mais do que um fascínio estético, a Natureza ser-lhe-á sempre urna exigência ética.
 
Mas viver, em meados do século passado, naquela terra inumana, era condenar-se a um inevitável aniquilamento. Logo no início da adolescência, foge para Oslo (na altura, com o belíssimo nome de Christiana) e, de emprego em emprego, enceta uma vida de vagabundo, afundando-se na mais negra miséria. Empurrado pela fome, embarca para a Terra Nova, para a pesca do bacalhau. Pouco depois, encontramo-lo em Chicago, trabalhando como leiteiro, condutor de eléctricos, porteiro de hotel, etc.; sempre em busca de algum dinheiro para comer, aparece, mais tarde, como assalariado rural no Dakota do Norte: mas não consegue arranjar uma situação rninimamente estável e, por isso, regressa à Noruega. Entretanto, no meio das insónias da fome, lê tudo o que consegue apanhar e fica profundamente marcado por certos autores: Strindberg, Dostoievski, Nietzsche, Mark Twain, etc.. Aprende línguas. E consegue voltar para a América como explicador de francês; mais tarde, procura dedicar-se à carreira de conferencista. Começa também a escrever poemas e contos. Mas o insucesso é total. Com trinta anos, no mais tremendo desespero, resolve regressar de novo à Noruega e escrever um romance: aparece assim a “A Fome”, em 1890.
 
Antes de A Fome, Knut Hamsun escrevera, porém, duas conferências bastante importantes para balizar este romance: Da Vida Intelectual na América e Da Vida Inconsciente da Alma. Na primeira, o escritor condena o modelo de civilização que via crescer nos Estados Unidos e que caracterizava como marcado pelo pragmatismo e pelo materialismo (detectando os seus princípios até em autores como Emerson e Whitman); na segunda, recusa o realismo vigente, defendendo a existência de um único real subjectivo, onde se diluem as fronteiras entre a alma e a matéria, e acusando de absurdo, por limitado, o realismo “social” de Ibsen.
 
Percebe-se, assim, por que é que A Fome nunca desliza para um tom reivindicativo ou miserabilista. O que o autor pretende é a descrição minuciosa das humilhações e dos orgulhos desconexos, das euforias e das depressões, das errâncias e dos abatimentos, dos delirantes ou mesquinhos projectos que provocam os nervos de uma alma a morrer de fome. Toda esta deambulação é exposta por uma escrita que procura confluir o real exterior e o íntimo num único olhar, acompanhando com o seu ritmo, entre o coeso e o lírico, as flutuações emocionais e intelectuais do narrador. Por outro lado, Knut Hamsun não visa estruturar de forma coerente um carácter, mas apresentar, aproveitando-se da sua experiência pessoal e com aparente imediatismo, a fragmentação, a dispersão, o intraduzível com que as emoções e os sentimentos se manifestam. Nesse sentido, esta escrita alveja um outro realismo, num esforço bem semelhante ao dos pintores impressionistas. Nada havia de comparável na narrativa coeva.
 
Todavia, o romance não se resume, como apontavam os seus principais detractores, à análise de uma situação patológica. O narrador entende-se como “corpo de um projecto” em que a escrita se afirma como verdade soberana contra qualquer contingência ou contrariedade. É esse projecto de existência pela palavra que o torna indisponível, até ao vómito, até à morte, a qualquer “alimento” que o prenda ao exterior desse mesmo projecto, levando-o a assumir integralmente a fome que passa.
 
As obras narrativas consequentes (Mistérios, Pan, etc.) vão revelar uma faceta complementar de Knut Hamsun: a convicção que a vagabundagem, até mesmo o nomadismo, é a única forma de manter uma certa independência face às imposições que uma civilização, cada vez mais materialista, vai criando através da presença do Outro. As personagens principais apresentam-se como seres contraditórios em permanente fuga, sem nada que os prenda, vivendo obsessivamente dentro das suas próprias fantasmagorias e ansiando por estabelecer una relação solitária e total com a natureza.
 
Pouco a pouco, as traduções sucedem-se e os seus romances aparecem por toda a Europa. Mas a sua infância, a dolorosa experiência da emigração e da fase inicial da sua actividade literária tinham tornado Knut Hamsun marcadamente anti-social, levando-o a ocultar-se nos amplos espaços das florestas nórdicas ou a deambular pelo continente europeu. A obsessiva certeza de que a literatura é a transmissão de uma verdade pessoal numa sociedade desinteressada pelo indivíduo, torna-o insatisfeito, conflituoso. As suas obras começam a insurgir-se contra a vida urbana, e o alastramento da nuvem negra da indústria, acompanhada dos valores sociais que ele tinha visto implantar-se nos Estados Unidos, para as regiões idílicas onde passara a infância, fá-lo tomar posições extremas, condenando os percursos da civilização ocidental e apelando cada vez com mais enfâse, a um retorno à Natureza.
 
Aos cinquenta anos, resolve então fixar-se no campo. A partir desta altura, a sua obra transforma-se num panegírico da vida rural e são estes romances, como Os Frutos da Terra, que vão dar origem à concessão do Prémio Nobel. Convence-se, mais tarde, que o pragmatismo e a carência de ideais das sociedades ocidentais são consequência da implantação dos regimes democráticos e, por isso, vírus espalhados pela Inglaterra. Volta-se então para a Alemanha, pátria do romantismo, do idealismo hegeliano, de Nietzsche e Wagner. Estavam criadas as condições para que Knut Hamsun se convertesse ao ideário do nazismo. E, em 1930, confessa-se publicamente adepto de Adolf Hitler.
 
Entretanto, as suas obras, a partir de 1920, deixaram de ter o mesmo interesse e importância, transformando-se apenas num libelo sarcástico contra o mundo que o rodeava e perdendo o sentido da complexidade do comportamento humano. A defesa da “independência de espírito” contra tudo e contra todos (posição que tanto fascinou Henry Miller e irá fascinar a “Beat Generation”) tinha-o encaminhado para um equívoco sem recuo possível.
 
Depois da libertação da Noruega, Knut Hamsun foi julgado como colaboracionista. No julgamento, foram consideradas como atenuantes o não ter professado posições anti-semitas, a confirmação de que tinha salvo de morte certa inúmeros cidadãos, a sua longa idade (tinha 85 anos) e ter sido dado como débil mental. Não foi, por isso, condenado à morte, mas foi obrigado a pagar uma gigantesca multa que o deixou na miséria. Voltara ao princípio. No mais completo ostracismo, continuou a escrever, exaltando a natureza e o prazer de viver, até morrer com 93 anos.
 
Publicado no Público em 1990.
 
Título: A Fome
Autor: Knut Hamsun
Prefácio: Paul Auster
Tradução: Liliete Martins
Revisão: Hélder Guégués
Editor: Cavalo de Ferro
Ano: 2004
254 págs., € 16,29
 


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