terça-feira, 5 de junho de 2018

MICHAEL ENDE

 


A INFÂNCIA DA FICÇÃO
 
De um modo um pouco estranho, uma das mais sólidas editoras portuguesas acaba de publicar duas obras de um autor alemão, Michael Ende, sobre o qual, antes destas edições, nenhuma referência significativa apareceu na imprensa portuguesa.
 
No entanto, quem acompanhe o movimento editorial estrangeiro sabe que A História Interminável foi um dos maiores sucessos de venda dos últimos anos na maioria dos inúmeros países onde foi traduzido e editado (Momo, anterior na produção do autor, tornou-se, em consequência das repercussões do primeiro título referido, também um best-seller em alguns países, como, por exemplo, em Espanha). Na R.F.A., A História Interminável foi considerado pela crítica alemã, como um dos mais importantes livros de ficção publicados nos últimos tempos, e toda uma geração que procura libertar-se das propostas socio-politícas dominantes, entendeu a sintonia que nele existia com as suas posições e assumiu-o como referência. Entretanto, baseado nesta obra, foi realizado um filme (muito criticado por Michael Ende), de orçamento gigantesco, que estreará em breve nas principais capitais europeias.
 
Sobre o autor, Michael Ende, pouco há a dizer: cinquenta e cinco anos, filho do pintor surrealista Edgar Ende, vivendo num palácio nos arredores de Roma, autor de outros títulos de ficção, mas que não tiveram o mesmo êxito.
 
A que se deve este sucesso? A História Interminável, como, de forma menos conseguida, Momo, concilia uma linguagem de elevado grau de comunicabilidade com uma recriação espectacular de heróis e espectros que caracterizam, e povoam, o imaginário infantil. Satisfaz, por isso, a nossa necessidade constante de redescobrir e fruir esse fabulário, de mergulhar na vertigem da pura aventura e do sonho, em resumo, as mesmíssimas motivações que têm levado multidões a ver os filmes de Spielberg e a esgotar dos escaparates das livrarias os romances de Tolkien.
 
Mas outra das razões evidentes é que a obra deste autor prenuncia uma nova literatura “programática”, análoga, na actualidade, ao neo-realismo dos anos quarenta. Contudo, passe a contradicção, “programática” pela negativa, já que, recusando a apresentação de qualquer proposta global, ela reconhece as críticas aos actuais modelos de desenvolvimento socio-económico, baseados no desperdício de meios naturais e na uniformização das capacidades humanas, ao apelar para a imaginação e para a disponibilidade das pessoas como meios de restaurar uma ordem social equilibrada. Neste sentido, pode-se considerar a obra de Michael Ende como “porta-voz” literário das inquietações que motivaram o aparecimento de novos movimentos sociais (e políticos) em toda a Europa, mas com maior vigor na R.F.A., e que propõem soluções alternativas de desenvolvimento.
 
Estando esta problemática bem clara nos dois livros agora traduzidos, ela é, no entanto, mais explícita (a nosso ver, em excesso) na fábula de Momo. Ela narra a luta movida por uma criança (entendida sempre como o depositário, por excelência, da imaginação e da disponibilidade) contra um grupo de “senhores cinzentos”, que, gradualmente, conseguiram convencer os habitantes de urna cidade a “pouparem” tempo, mostrando-lhes quanto desperdiçaram e o que podiam enriquecer se o tivessem poupado. A vitória de Momo, a criança, é resultante de ter descoberto a razão que movia os “senhores cinzentos”, — necessitarem de se “alimentar” deste tempo poupado para subsistirem —, e de ter conseguido redistribuir o tempo roubado, eliminando, desse modo, o tédio mortal em que as pessoas viviam e dando-lhes disponibilidades para se voltarem a encontrar.
 
Parece-me que, mesmo por esta sinopse, se revela bem a referida condenação de todo um conjunto de valores fundamentais dos actuais modelos socio-políticos.
 
Mas Momo é, nitidamente, o “compasso de espera” para uma produção muito mais interessante. De facto, A História Interminável, tanto pela sua estrutura narrativa, obedecendo a rigorosos nexos e a um plano que parece estabelecido no “incipit”, como pela polissemia do bestiário e do conjunto de símbolos que contém, referencia uma imensa cultura literária que vai desde a Cabala aos poemas homéricos, da literatura cavaleiresca medieval às Mil e Uma Noites, de Rabelais à Divina Comédia, do romantismo alemão ao romance gótico inglês, dos romances clássicos de aventuras do séc. XIX a Lewis Carroll e ao já referido Tolkien.
 
No entanto, não se confina o interesse desta obra a conseguir fazer-nos rememorar as vigílias alucinadas da nossa infância, nem a perseguir uma tradição literária. Sob a aparência despretensiosa, que só o título trai, o livro de Michael Ende ambiciona ficcionar a infância da ficção num livro para a infância. E este entrosamento tem um objectivo: evidenciar que a necessidade de inventar e ouvir histórias, comummente considerada como característica do mundo infantil, é uma necessidade “orgânica”, visto que só recriando situações dramáticas para onde, de forma emotiva, nos transferimos, se consegue alargar os campos em que a nossa experiência pode circular, e, assim, adquirir uma outra compreensão do quotidiano.
 
A História Interminável narra a leitura de uma criança, Bastian Baltazar Bux, de um livro pelo qual sentiu uma inexplicável atracção a ponto de o levar a roubá-lo de um alfarrabista. Esse livro, que tem o mesmo título do romance que estamos a ler, narra, por sua vez, a Grande Busca, de um jovem herói, do remédio que salve o Reino da Fantasia, que está a ser devorado pelo Nada, e cure a Princesa Criança que, mais do que governar, produz este Reino.
 
Percebemos, pela leitura de B.B.B., que a A História Interminável parte da existência de dois mundos distintos, mas imbrincados (na simbologia da obra, representados por duas cobras que se prendem pela cauda, uma branca e outra negra, e narrados em caracteres de cores distintas): o do real, dependente de regras naturais e sociais, e o da mitificação, liberto, isto é, dependente apenas de regras pessoais.
 
Após uma viagem iniciática, que o levou a passar dolorosas situações e a confrontar-se com monstros “fabulosos”, o jovem herói do Reino da Fantasia descobre que só quando um ser humano (visto que nenhum ser de Fantasia pode desejar e inventar), vindo do Mundo Real, “renomear” a Princesa Criança, curando-a, aquele Reino renascerá.
 
Fica-se, assim, sabendo que o Reino da Fantasia não é mais do que uma representação não-reflexa do Mundo Real, e que a sua destruição pelo Nada deriva da desordem existente no Mundo Real, que, ao condicionar a capacidade de mitificar, a transforma em mistificação, fazendo, dos seres de Fantasia, espectros, cadáveres que envenenam os homens, cegando-os de delírio e medo.
 
Mas, paralelamente, o jovem leitor vai percebendo que o Reino da Fantasia é uma representação que “existe” com a sua leitura: é ele, portanto, o “salvador” deste Reino e, para isso, terá que descobrir um meio de “saltar” para ele e nomear a Princesa Criança. Fá-lo quando descobre, através da excelente fábula do Velho da Montanha Errante, que a história do Reino da Fantasia não passa de um livro, intitulado A História Interminável, que é o “seu” livro, isto é, aquele que ele lê, e que, “por isso”, conta a sua própria história.
 
E aqui está um dos aspectos mais interessantes e originais do romance de Michael Ende: conseguir ficcionar, de um modo eficaz e convincente, o princípio de que o leitor é o verdadeiro herói de qualquer livro, e que estas duas entidades, existindo uma para a outra, são representação numa história interminável que é a da ficção.
 
E ficamos, assim, perplexos com urna vertiginosa consequência desta ficção de uma leitura: é que se a história de um livro é o leitor, nós, que somos leitores de A História Interminável, somos, pela leitura, personagens deste livro, refazendo-o, e, por isso, Outro nos lerá, que, por sua vez, será representação para Outro, e sucessivamente, como se fossemos um espelho que reflectisse a imagem de outro espelho, cristalizados até ao fim dos espaços e dos tempos.
 
Inicia-se depois uma segunda parte, toda passada no Reino da Fantasia, que narra a viagem, também iniciática, de B.B.B. de regresso ao Mundo Real. Viagem dolorosa, porque conforme ele vai esgotando os seus desejos na recriação de Fantasia, vai, ao mesmo tempo, perdendo a dimensão real, deixando de ser humano: mas tal situação é insustentável (mesmo que ele, algumas vezes, o deseje), porque a capacidade de inventar é unicamente humana, e, portanto, para que o Reino da Fantasia não desapareça, ele terá que regressar.
 
Será então uma viagem de despojamento, que o levará quase à destruição. Só no derradeiro momento, impelido pelo seu último desejo, e agarrado à única imagem que lhe resta do seu passado, é que se lhe revelará a verdadeira motivação porque realizou toda esta aventura: o desejo de amar. É esta descoberta que lhe permite conhecer o caminho para o Centro da Fantasia e mergulhar na Fonte da Vida, voltando ao Mundo Real.
 
Entende-se então outro dos sentidos da obra Michael Ende: é o desejo e a necessidade de amar que produzirão a mitificação necessária para que exista uma ordem equilibrada das coisas.
 
Em resumo, A História Interminável, não é outra senão a história, necessariamente interminável, do ficcionar. E o sentido da ficção será o de representar, como um eterno Sísifo, um real que só existe enquanto for representado de modo não-reflexo.
 
É entendendo esta concepção da ordem universal, contida na obra de Michael Ende, que se perceberá o entusiasmo claramente político com que foi acolhida: é que ela encerra, de forma implícita, a condenação de uma ordem social que não permite qualquer formalização da Utopia (o Reino por excelência da Fantasia), que não permite “fugas” nem imaginar “alternativas”. O que ela condena, portanto, é todo um “sistema social” imperativamente totalitário.
 
O livro de Michael Ende estabelece assim um claro princípio epistemológico, com incidências na ordem política: a realidade só se conhece quando, viajando ao Reino da Fantasia, se reconstrói a Utopia que relativiza o Real e, pelo conhecimento, o redimensiona; e ficcionar torna-se assim uma forma de conhecer, isto é, de propiciar, entre nós, o amor.
  
 
Publicado no Expresso em 1984.
 
 
 
Título: A História Interminável
Autor: Michael Ende
Tradutor: Maria do Carmo Cary
Editor: Editorial Presença
Ano: 1984
308 págs., € 20,19
 
 
Título: Momo
Autor: Michael Ende
Tradutor: Maria Margarida Morgado
Editor: Editorial Presença
Ano: 1984
198 págs., € 12,90
 



 



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