A INFÂNCIA DA FICÇÃO
De um
modo um pouco estranho, uma das mais sólidas editoras portuguesas acaba de
publicar duas obras de um autor alemão, Michael Ende, sobre o qual, antes
destas edições, nenhuma referência significativa apareceu na imprensa portuguesa.
No
entanto, quem acompanhe o movimento editorial estrangeiro sabe que A
História Interminável foi um dos maiores sucessos de venda dos últimos anos
na maioria dos inúmeros países onde foi traduzido e editado (Momo,
anterior na produção do autor, tornou-se, em consequência das repercussões do
primeiro título referido, também um best-seller em alguns países, como, por
exemplo, em Espanha). Na R.F.A., A História Interminável foi
considerado pela crítica alemã, como um dos mais importantes livros de ficção
publicados nos últimos tempos, e toda uma geração que procura libertar-se das
propostas socio-politícas dominantes, entendeu a sintonia que nele existia com
as suas posições e assumiu-o como referência. Entretanto, baseado nesta obra,
foi realizado um filme (muito criticado por Michael Ende), de orçamento
gigantesco, que estreará em breve nas principais capitais europeias.
Sobre
o autor, Michael Ende, pouco há a dizer: cinquenta e cinco anos, filho do pintor
surrealista Edgar Ende, vivendo num palácio nos arredores de Roma, autor de
outros títulos de ficção, mas que não tiveram o mesmo êxito.
A que
se deve este sucesso? A História Interminável, como, de
forma menos conseguida, Momo, concilia uma linguagem de
elevado grau de comunicabilidade com uma recriação espectacular de heróis e
espectros que caracterizam, e povoam, o imaginário infantil. Satisfaz, por
isso, a nossa necessidade constante de redescobrir e fruir esse fabulário, de
mergulhar na vertigem da pura aventura e do sonho, em resumo, as mesmíssimas
motivações que têm levado multidões a ver os filmes de Spielberg e a esgotar
dos escaparates das livrarias os romances de Tolkien.
Mas
outra das razões evidentes é que a obra deste autor prenuncia uma nova
literatura “programática”, análoga, na actualidade, ao neo-realismo dos anos
quarenta. Contudo, passe a contradicção, “programática” pela negativa, já que,
recusando a apresentação de qualquer proposta global, ela reconhece as críticas
aos actuais modelos de desenvolvimento socio-económico, baseados no desperdício
de meios naturais e na uniformização das capacidades humanas, ao apelar para a imaginação
e para a disponibilidade das pessoas como meios de restaurar uma ordem social
equilibrada. Neste sentido, pode-se considerar a obra de Michael Ende como
“porta-voz” literário das inquietações que motivaram o aparecimento de novos
movimentos sociais (e políticos) em toda a Europa, mas com maior vigor na R.F.A.,
e que propõem soluções alternativas de desenvolvimento.
Estando
esta problemática bem clara nos dois livros agora traduzidos, ela é, no
entanto, mais explícita (a nosso ver, em excesso) na fábula de Momo.
Ela narra a luta movida por uma criança (entendida sempre como o depositário,
por excelência, da imaginação e da disponibilidade) contra um grupo de
“senhores cinzentos”, que, gradualmente, conseguiram convencer os habitantes de
urna cidade a “pouparem” tempo, mostrando-lhes quanto desperdiçaram e o que
podiam enriquecer se o tivessem poupado. A vitória de Momo, a criança, é resultante
de ter descoberto a razão que movia os “senhores cinzentos”, — necessitarem de
se “alimentar” deste tempo poupado para subsistirem —, e de ter conseguido
redistribuir o tempo roubado, eliminando, desse modo, o tédio mortal em que as
pessoas viviam e dando-lhes disponibilidades para se voltarem a encontrar.
Parece-me
que, mesmo por esta sinopse, se revela bem a referida condenação de todo um
conjunto de valores fundamentais dos actuais modelos socio-políticos.
Mas Momo
é, nitidamente, o “compasso de espera” para uma produção muito mais
interessante. De facto, A História Interminável, tanto pela
sua estrutura narrativa, obedecendo a rigorosos nexos e a um plano que parece
estabelecido no “incipit”, como pela polissemia do bestiário e do conjunto
de símbolos que contém, referencia uma imensa cultura literária que vai desde a
Cabala aos poemas homéricos, da literatura cavaleiresca medieval às Mil e
Uma Noites, de Rabelais à Divina Comédia, do romantismo alemão
ao romance gótico inglês, dos romances clássicos de aventuras do séc. XIX a Lewis
Carroll e ao já referido Tolkien.
No
entanto, não se confina o interesse desta obra a conseguir fazer-nos rememorar
as vigílias alucinadas da nossa infância, nem a perseguir uma tradição literária.
Sob a aparência despretensiosa, que só o título trai, o livro de Michael Ende
ambiciona ficcionar a infância da ficção num livro para a infância. E este entrosamento
tem um objectivo: evidenciar que a necessidade de inventar e ouvir histórias,
comummente considerada como característica do mundo infantil, é uma necessidade
“orgânica”, visto que só recriando situações dramáticas para onde, de forma
emotiva, nos transferimos, se consegue alargar os campos em que a nossa experiência
pode circular, e, assim, adquirir uma outra compreensão do quotidiano.
A História
Interminável narra a leitura de uma criança, Bastian
Baltazar Bux, de um livro pelo qual sentiu uma inexplicável atracção a ponto de
o levar a roubá-lo de um alfarrabista. Esse livro, que tem o mesmo título do
romance que estamos a ler, narra, por sua vez, a Grande Busca, de um jovem herói,
do remédio que salve o Reino da Fantasia, que está a ser devorado pelo Nada, e
cure a Princesa Criança que, mais do que governar, produz este Reino.
Percebemos,
pela leitura de B.B.B., que a A História Interminável parte da
existência de dois mundos distintos, mas imbrincados (na simbologia da obra, representados
por duas cobras que se prendem pela cauda, uma branca e outra negra, e narrados
em caracteres de cores distintas): o do real, dependente de regras naturais e
sociais, e o da mitificação, liberto, isto é, dependente apenas de regras pessoais.
Após uma
viagem iniciática, que o levou a passar dolorosas situações e a confrontar-se
com monstros “fabulosos”, o jovem herói do Reino da Fantasia descobre que só quando
um ser humano (visto que nenhum ser de Fantasia pode desejar e inventar), vindo
do Mundo Real, “renomear” a Princesa Criança, curando-a, aquele Reino renascerá.
Fica-se,
assim, sabendo que o Reino da Fantasia não é mais do que uma representação não-reflexa
do Mundo Real, e que a sua destruição pelo Nada deriva da desordem existente no
Mundo Real, que, ao condicionar a capacidade de mitificar, a transforma em
mistificação, fazendo, dos seres de Fantasia, espectros, cadáveres que
envenenam os homens, cegando-os de delírio e medo.
Mas,
paralelamente, o jovem leitor vai percebendo que o Reino da Fantasia é uma
representação que “existe” com a sua leitura: é ele, portanto, o “salvador”
deste Reino e, para isso, terá que descobrir um meio de “saltar” para ele e nomear
a Princesa Criança. Fá-lo quando descobre, através da excelente fábula do Velho
da Montanha Errante, que a história do Reino da Fantasia não passa de um livro,
intitulado A História Interminável, que é o “seu” livro, isto é, aquele que
ele lê, e que, “por isso”, conta a sua própria história.
E aqui
está um dos aspectos mais interessantes e originais do romance de Michael Ende:
conseguir ficcionar, de um modo eficaz e convincente, o princípio de que o leitor
é o verdadeiro herói de qualquer livro, e que estas duas entidades, existindo
uma para a outra, são representação numa história interminável que é a da ficção.
E
ficamos, assim, perplexos com urna vertiginosa consequência desta ficção de uma
leitura: é que se a história de um livro é o leitor, nós, que somos leitores de
A
História Interminável, somos, pela leitura, personagens deste livro,
refazendo-o, e, por isso, Outro nos lerá, que, por sua vez, será representação
para Outro, e sucessivamente, como se fossemos um espelho que reflectisse a
imagem de outro espelho, cristalizados até ao fim dos espaços e dos tempos.
Inicia-se
depois uma segunda parte, toda passada no Reino da Fantasia, que narra a viagem,
também iniciática, de B.B.B. de regresso ao Mundo Real. Viagem dolorosa, porque
conforme ele vai esgotando os seus desejos na recriação de Fantasia, vai, ao
mesmo tempo, perdendo a dimensão real, deixando de ser humano: mas tal situação
é insustentável (mesmo que ele, algumas vezes, o deseje), porque a capacidade
de inventar é unicamente humana, e, portanto, para que o Reino da Fantasia não
desapareça, ele terá que regressar.
Será
então uma viagem de despojamento, que o levará quase à destruição. Só no
derradeiro momento, impelido pelo seu último desejo, e agarrado à única imagem
que lhe resta do seu passado, é que se lhe revelará a verdadeira motivação porque
realizou toda esta aventura: o desejo de amar. É esta descoberta que lhe
permite conhecer o caminho para o Centro da Fantasia e mergulhar na Fonte da Vida,
voltando ao Mundo Real.
Entende-se
então outro dos sentidos da obra Michael Ende: é o desejo e a necessidade de
amar que produzirão a mitificação necessária para que exista uma ordem equilibrada
das coisas.
Em
resumo, A História Interminável, não é outra senão a história, necessariamente
interminável, do ficcionar. E o sentido da ficção será o de representar, como
um eterno Sísifo, um real que só existe enquanto for representado de modo não-reflexo.
É
entendendo esta concepção da ordem universal, contida na obra de Michael Ende,
que se perceberá o entusiasmo claramente político com que foi acolhida: é que
ela encerra, de forma implícita, a condenação de uma ordem social que não permite
qualquer formalização da Utopia (o Reino por excelência da Fantasia), que não
permite “fugas” nem imaginar “alternativas”. O que ela condena, portanto, é
todo um “sistema social” imperativamente totalitário.
O
livro de Michael Ende estabelece assim um claro princípio epistemológico, com
incidências na ordem política: a realidade só se conhece quando, viajando ao
Reino da Fantasia, se reconstrói a Utopia que relativiza o Real e, pelo
conhecimento, o redimensiona; e ficcionar torna-se assim uma forma de conhecer,
isto é, de propiciar, entre nós, o amor.
Publicado no Expresso em 1984.
Título: A História Interminável
Autor: Michael Ende
Tradutor: Maria do Carmo Cary
Editor: Editorial Presença
Ano: 1984
308 págs., € 20,19
Título: Momo
Autor: Michael Ende
Tradutor: Maria Margarida Morgado
Editor: Editorial Presença
Ano: 1984
198 págs., € 12,90
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