sábado, 10 de outubro de 2015

ALFREDO BRYCE ECHENIQUE

 
 
 
O HUMOR TRANSFIGURANTE DA MEMÓRIA
 
O primeiro livro a ser traduzido e editado em Portugal de Alfredo Bryce Echenique, intitulado Morte de Sevilha em Madrid e outros contos, foi no início dos anos oitenta, na colecção “Vozes da América Latina” das Ed. 70, um produto típico do entusiasmo editorial que rodeou o aparecimento de Cem Anos de Solidão e o chamado “boom” da literatura latino-americana. Recordar hoje este acontecimento, permite mais uma vez constatar como a imagem que na altura se fez desta literatura (e que ainda perdura de uma forma genérica) era demasiado simplista e redutora. De facto, a produção literária de Alfredo Bryce Echenique revelava-se bem longe dos cânones do “realismo fantástico” e, por conseguinte, bastante periférica em relação aos modelos que, naquela altura, o leitor esperava encontrar na literatura sul-americana. Talvez por isso, este livro foi um razoável insucesso comercial e mais nenhum editor procurou publicar outra obra deste autor em Portugal, caindo, pelo menos em termos públicos, no esquecimento.
 
Só passados vinte anos, a Ed. Teorema, no seu assinalável esforço de divulgar autores contemporâneos da literatura universal, resolveu editar um novo título de Alfredo Bryce Echenique, Guia Triste de Paris, que obteve também uma recepção muito discreta. E, recentemente, de uma só assentada, duas editoras (a Ed. Teorema, que parece que resolveu retomar a edição das obras deste autor, e as Publicações Dom Quixote) publicaram duas obras de períodos bem distintos da sua produção literária: a primeira, intitulada A Vida Exagerada de Martín Romaña, é uma extensa narrativa que, para muitos críticos, é considerada uma das obras-chave de Alfredo Bryce Echenique; a segunda, O Horto da Minha Amada, é um dos seus romances mais recentes e obteve, em Espanha, o Prémio Planeta 2002. Creio que este sucesso e o anúncio da vinda do autor a Portugal (que, depois, não se veio a confirmar) justificam este redobrado interesse pela obra deste autor por parte dos editores portugueses.
 
Deve, contudo, assinalar-se que Alfredo Bryce Echenique é, a seguir a Mario Vargas Llosa, o autor peruano mais respeitado e considerado em termos internacionais, sendo bem conhecido no país vizinho e em França, e traduzido e editado na maior parte dos países europeus. A sua primeira obra, uma colectânea de contos, Huerto Cerrado, foi publicada no final da década de sessenta, quando o autor, já com perto de trinta anos, se encontrava exilado em Paris, tendo obtido uma menção honrosa no prestigiado Prémio Casa de las Américas. Mas é com o romance que publicou de seguida, em 1970, Un Mundo Para Julius, que consegue o reconhecimento do público e da crítica peruanos, ganhando o Prémio Nacional de Literatura. Depois, foi publicando colectâneas de contos, de crónicas e novelas, atingindo neste momento o conjunto da sua obra mais de duas dezenas de títulos. Neste conjunto, são muitos os críticos que consideram o díptico Cadernos de Navegação Num Cadeirão Voltaire, constituído por A Vida Exagerada de Martín Romaña, de 1981 e agora publicado no nosso país, e por El Hombre Que Hablaba de Octávia de Cádiz, de 1985, como os seus romances mais importantes. Para além dos já mencionados (e de Tantas Veces Pedro, de 1977, Reo de Nocturnidad, de 1997, e La Amigdalitis de Tarsan, de 1999), tem ainda que referir-se que Alfredo Bryce Echenique é um exímio contista, género a que tem dedicado muito do seu labor literário. Em resumo, este autor já recebeu os mais importantes galardões literários, tanto no seu país de origem como em Espanha, e é hoje considerado um dos maiores narradores de língua castelhana.
 
A leitura destes dois romances agora publicados em Portugal permite apreender com nitídez as componentes determinantes de toda a sua obra: primeiro, uma recriação constante de elementos autobiográficos; segundo, uma análise devastadora de todas as ilusões e fugazes convicções com que se vai motivando o preenchimento dos dias, utilizando um humor, ao mesmo tempo feroz e nostálgico, de quem compreendeu que a melhor forma de lhes sobreviver é encarando-se com uma implacável auto-ironia. Tudo isto assente num estilo barroco, luxuriante de imagens e de derivações, excessivo, inúmeras vezes redundante, que se revela muito acertado para a narração da “exagerada” vida vulgar de Martín Romaña.
 
A obra que tem esta personagem como narrador é um verdadeiro ajuste de contas com o parisiense Maio de 68 e com as ilusões revolucionárias de uma geração que acreditou, com um optimismo ingénuo, que poderia transformar o mundo ou, pelo menos, as relações políticas e socio-económicas da nossa sociedade. Martín Romaña, tal como o autor, encontra-se na altura em Paris, no seio da comunidade peruana exilada, repleto de ambições literárias e revolucionárias, mas, em particular, mergulhado numa relação amorosa que crê imorredoira e inatingível às histórias privadas (e públicas) dos protagonistas. A Vida Exagerada de Martín Romaña, ao descrever as atribulações amorosas e grupuscalares desta personagem, vai dissecando o inebriamento discursivo de uma geração que, no fundo, acredita inconscientemente no valor mágico das suas palavras, sem se aperceber que, sob esse inebriamento, já se perfila o carreirismo político e as ambições sociais de quem se aproveita, de uma forma perversa, desse entusiasmo tão sincero quanto adolescente. Mas este romance não se confina à desmontagem do discurso utopista de uma geração: procura também, com uma sumptuosa ironia, perceber como esse posicionamento ideológico afecta os interstícios mais profundos da vida privada até ao desfiguramento total das relações amorosas, transformando-as num anedotário tragico-cómico. A literatura aparece, assim, ao transfigurar em farsa, carregada de nostalgia, as feridas amorosas e o desperdício dos dias, mais uma forma de redimir o sofrimento e a inutilidade do viver, recriando-lhes um sentido: a ficção, ao fantasiar a memória, torna-se, por conseguinte, a melhor forma de sobreviver.
 
Por isso mesmo, A Vida Exagerada de Martín Romaña, no conjunto da sua obra, é o romance onde o mesclamento entre autobiografia e ficção é mais desenvolvido, jogando permanentemente entre recriação e memória, entre personagens fictícias e reais (saliente-se que uma das personagens reais que aparece neste romance é o próprio Alfredo Bryce Echenique, por quem o narrador nutre um sentimento de amor/ódio constante). Por outro lado, é também neste romance, no conjunto das obras agora traduzidas, em que o autor mais desenvolve em termos estilísticos uma reflexão divagante (e metaficcional) sobre os constantes desajustamentos entre desejo e realidade, entre os valores da amizade, do amor, da política e da literatura e aquilo que a própria vida nos vai concedendo do que se sonha e se crê.
 
Quanto a O Horto da Minha Amada, o segundo romance agora traduzido de Alfredo Bryce Echenique, pode afirmar-se que está, mesmo sem o autor abandonar as suas características estilísticas, mais próximo dos cânones convencionais do romance e, de certo modo, mais equilibrado entre as suas componentes narrativas. Nesta obra, o autor descreve a relação amorosa entre um jovem adolescente e uma amiga dos pais, com o dobro da idade dele, pertencente a burguesia limenha. A este nível, O Horto da Minha Amada apresenta alguns trechos modelares de literatura erótica, principalmente tendo em consideração como o autor concilia a sua já proverbial ironia com a delicadeza com que reforça o registo sensual dos jogos amorosos entre uma mulher, possuindo o pleno domínio do seu corpo e das artes amatórias, e um jovem que tacteia, procurando superar a sua desatenção e ingenuidade, na resposta à pulsão do seu desejo. Mas esta trama permite também, através da descrição das reacções sociais a esta relação não-convencional e inconveniente, tipificar, de modo bem humorado, o arrivismo provinciano de alguma pequena burguesia peruana que procura, através da convenção matrimonial, ascender socialmente e os limites existênciais de uma burguesia “aristocratizada”, genuinamente sul-americana, que, manietada no seu estatuto, não consegue compreender as subliminares mudanças de sentido nos sentimentos e nos afectos.
 
Publicado no Público em 2005.
           
 
Título: A Vida Exagerada de Martín Romaña
Autor: Alfredo Bryce Echenique
Tradução: Miranda das Neves
Editor: Teorema
Ano: 2005
498 págs., 28,50 €
 
Título: O Horto  da Minha Amada
Autor: Alfredo Bryce Echenique
Tradução: J. Teixeira de Aguilar
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 2005
288 págs., 16,65 €
 


 
 
 

 



Sem comentários: