sexta-feira, 16 de outubro de 2015

ANNIE ERNAUX

 
 
 
DAR VOZ
 
Numa recente entrevista, a escritora Annie Ernaux, de quem foi agora publicado no nosso país, em edição conjunta, duas curtas obras, Um Lugar Ao Sol e Uma Mulher, afirmou: “Se escrevo, é para salvar o que já passou, fazer com que exista pela escrita, tentar compreender, explorar o que vivi sem o conhecer.” Talvez esta frase possa parecer, à primeira vista, uma afirmação de circunstância. Mas quem tiver lido os textos agora publicados, ou mesmo qualquer outra obra desta autora, sabe que nela está rigorosamente contida todo o seu projecto literário.
 
Foi em 1974 que Annie Ernaux publicou o seu primeiro romance, Les Armoires Vides, referenciado, de imediato, pela crítica como uma obra consistente e inovadora. Mas é só em 1984, com a sua quarta obra, Um Lugar Ao Sol (cujo título original é La Place, vencedora do prémio Renaudot desse ano), um dos textos agora publicados, que o seu projecto literário assume com precisão os presentes contornos.
 
O aspecto que mais se realça do conjunto da obra desta escritora (que hoje já consta mais de dez títulos) é a sua radical coerência, a sua recusa de, em qualquer circunstância, abandonar o percurso definido (ao ponto de, alguns críticos, um pouco depreciativamente, falarem de um “método” Ernaux de escrita). Essa coerência parte do princípio de que toda a obra literária deve servir para evocar momentos ou figuras do seu passado pessoal que, por razões éticas e de perturbação traumática, deverão ter uma “real e definitiva” existência pela escrita. Por isso mesmo, esses momentos ou figuras do passado aparecem sempre à escritora com uma obcessiva necessidade de serem escritos, já que o seu silenciamento assume, perante a consciência da escritora, as características de um crime. Além disso, a marca traumática desses momentos ou figuras advém-lhes, em grande parte, do seu carácter de inexplicado ou de não-verbalizado, e, por conseguinte, a sua passagem a acto de escrita, contribuí, de certo modo, para os compreender e “resolver”.
 
Repare-se, por exemplo: Um Lugar Ao Sol e Uma Mulher são, respectivamente, a evocação das vidas do pai e da mãe da escritora, elaboradas a partir da sua morte. Gente humilde (o pai iniciou a sua vida como camponês, depois operário e, por fim, dono daquilo que, em genuíno português, se chamaria uma “tasca”; a mãe foi operária e mais tarde merceeira), a passagem das suas vidas a escrito tem, como objectivo essencial, testemunhar a existência dos que não ascenderam ao estatuto de ter “voz”, de ter uma língua própria: há, portanto, para além de uma exigência ética, a necessidade de, com alguma fragilidade, completar, pelo acto de escrita, o “handicap” primordial das suas vidas e de dar “eco” à dimensão de mágoa e sofrimento que este destino de silêncio lhes provoca. Como a própria Annie Ernaux anota no final de Uma Mulher, a morte da sua mãe só se concretiza em definitivo após a redacção do livro que lhe dedicou.
 
Percebe-se, rapidamente, que o que está em jogo na obra de Annie Ernaux arrasta consigo um enorme turbilhão de emoções. Não admira por isso, que a autora, por esse motivo, mas também por razões morais, por respeito por aquilo que narra e, além disso, por necessidade de compreender com objectividade os fundamentos traumáticos do narrado, se sinta impelida a optar por um estilo de “relatório”, onde, na aparência, se abdica de qualquer “efeito” literário. Como afirmou por diversas vezes, a sua obra não pretende “fazer literatura” e a própria Annie Ernaux tem alguma dificuldade em a classificar; segundo ela, situar-se-ia “abaixo da literatura”, entre um estudo de carácter sociopsicológico e a narração memorialista.  
 
Porém, o leitor não se iluda com esta posição anti-literária da autora: sob as exigências éticas que a motivam, há opções estéticas bem claras; e, sob o esforço tirânico da autora em arquitectar um texto “seco e objectivo”, irrompe constantemente a emoção de quem escreve. De facto, em todos os seus textos está bem expresso o intenso (e até tenso) envolvimento da autora no que é escrito, a sua ânsia quase crispada de compreender e perceber a motivação do sucedido e do narrado. Seja a sua vida conjugal (La femme gelée), a relação com um amante casado (Passion simple), a doença de Alzheimer da mãe (Je ne suis pas sortie de ma nuit), a ruptura com a sua origem social humilde (Ce qu’ils disent ou rien) ou um aborto clandestino (L’événement), tudo pode ser objecto de reflexão e análise para Annie Ernaux, ao ponto de se poder afirmar que existe, pelo grau de exposição da sua própria vida, uma atitude de imolação da sua existência através da escrita. 
 
Pela sua radicalidade e exigência, a obra de Annie Ernaux é, inequivocamente, uma das mais importantes e interessantes que nos dias de hoje tem origem nas letras francesas (basta só dizer que a crítica reconhece que a obra de Annie Ernaux dá uma continuidade muito peculiar à obra de três “monstros sagrados” da literatura francesa: Simone de Beauvoir, Jean Genet e Marcel Proust). Por isso mesmo, é doloroso ver a sua obra maltratada como acontece na edição portuguesa. De facto, não só a capa da presente edição revela mau gosto e desadequação ao conteúdo do livro, como a tradução, associada a falhas de revisão, aparece com muitas construções frásicas duvidosas.
 
Publicado no Público em 2007.
 
 
Título: Um Lugar Ao Sol seguido de Uma Mulher
Autor: Annie Ernaux
Tradução: Eduardo Saló
Editor: Livros do Brasil
119 págs., € 7,57   


 

    
 



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