sexta-feira, 23 de outubro de 2015

EDITH WHARTON

 
 



A ALTERNATIVA DA FUGA

 
Um dos factos sintomáticos e determinantes da cultura americana foi a “fuga”, desde os finais do século passado até à II Guerra Mundial, de várias gerações de intelectuais e escritores para a Europa. É evidente que a motivação para esta “fuga” nasceu do fascínio pelos “pergaminhos” culturais do Velho Continente por parte desses intelectuais e escritores; mas convém associar a esta motivação a convicção generalizada entre eles de que a América não passava de um deserto inóspito e asfixiante.

 
Porém, deve salientar-se que essa motivação determinou “destinos” distintos de geração para geração: enquanto a partir da geração de um Hemingway e de um Fitzgerald (e até mesmo da sua “mãe literária”, Gertrud Stein), o que esses intelectuais procuravam, ao deslocarem-se para estas bandas, era adquirir uma distanciação que lhes permitisse compreender melhor a realidade americana, o que impeliu escritores de gerações anteriores, como Henry James ou Edith Wharton, a autora de quem foi agora traduzido este A Casa da Alegria, a virem para a Europa, foi o procurarem uma outra ambiência criadora, mais em consonância com os seus gostos estéticos e literários, e daí que a sua “fuga” se tenha convertido em definitivo exílio.
 
Edith Wharton, discípula e amiga de Henry James, pertencia, tal como este, à alta burguesia americana; mas foi em França, onde, por razões de sensibilidade cultural, se exilou, um ano após ter publicado A Casa da Alegria (1905), que realizou uma significativa obra romanesca em que, minuciosamente, analisa os comportamentos da sua originária classe social.

 
Sendo hoje considerada uma autora clássica da literatura americana, a sua obra não teve, contudo, seguidores significativos: os seus parâmetros estéticos e literários, muito influenciados pelos de Henry James, eram, talvez, excessivamente novecentistas para serem compreendidos pelas futuras gerações de romancistas e a sua linguagem estava bem afastada da oralidade que vai determinar, em termos estilísticos, a posterior produção romanesca americana.

 
A Casa da Alegria, um dos seus mais importantes romances, é bem característico de toda a ficção de Edith Wharton: um enredo banalíssimo, de um sentimentalismo quase raiando o patético, mas que uma particular sagacidade de caracterização e observação psicológica, aliada a uma rigorosa, e muitas vezes original, construção romanesca, transforma numa obra notável.

 
Tudo se resume à história de uma jovem em idade casadoira, órfã de uma “boa família” falida, que se vê impelida entre, por um lado, tentar manter, a custo de dívidas e dependências ambíguas, um estatuto de luxo que lhe permita continuar num circuito social que propicie um casamento que lhe resolva os seus problemas financeiros, e, por outro, abandonar tudo isto, abrindo-se a uma relação onde só prevaleça “a palavra que tudo torna claro”.

 
Mas a leitura do romance vai, a pouco e pouco, dando consciência ao leitor de que este enredo não passa de um logro, de um artifício, para transmitir, nas suas entrelinhas, um “excedente”: a convicção de que o confronto, entre um indivíduo desprovido de “poderes” sobre os códigos sociais estabelecidos e a própria sociedade, está condenado ao malogro, desde que seja unicamente conduzido por uma imperativa obstinação; e que só a produção de códigos alternativos, resultantes de premissas distintas, é que pode transformar esse confronto numa afirmação individual. É esta a legibilidade possível dos constantes “pecados”, segundo os códigos sociais então vigentes, em que vai caindo a personagem principal de A Casa da Alegria, Lily Barth, ao tentar, de forma ansiosa, brilhar na alta sociedade nova-iorquina do princípio do século. E é também este o sentido do discurso alternativo, assente numa paixão com a capacidade de despistar os referidos códigos sociais, que lhe contrapõe a única personagem que poderia salvar Lily Barth do ciclo destrutivo em que se encontra.

 
Vemos, portanto, que Edith Wharton não faz mais do que inscrever na sua produção romanesca aquilo que já assinalámos como uma constante cultural americana: a necessidade do indivíduo, para existir na sociedade americana, de fugir, de ”desterritorializar-se” (nem que seja para descobrir na Europa o “oxigénio” necessário para um possível regresso). Por outro lado, ao centrar esta problemática numa figura feminina, percebe-se por que razão a obra desta autora foi encarada como um marco fundamental para a formulação de uma sensibilidade feminina que se procurava libertar das condicionantes de uma sociedade acentuadamente victoriana.
 
Por fim, convém realçar que consideramos corajosa esta edição em português de uma obra de Edith Wharton, uma autora inegavelmente importante, e, contudo, não muito conhecida, nem vocacionada para ter no nosso país uma enorme popularidade. Mas, ao mesmo tempo, parece-nos quase suicida que não se tenha feito um esforço para acompanhar esta edição de uma sucinta apresentação que situe a autora e a sua obra. Além disso, é também lamentável que esta tradução cuidada seja tantas vezes ensombrada por um número exagerado de gralhas.
 
Publicado no Expresso em 1987.

 

 

Título: A Casa da Alegria
Autor: Edith Wharton
Tradutor: Wanda Ramos
Editor: Ed. Presença
Ano: 1987
289 págs., esg

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