terça-feira, 13 de outubro de 2015

HERMANN HESSE


 
 
 
 

UMA OUTRA ORDEM
 
Uma das evidências da biografia de Hermann Hesse é o carácter dilacerante que sempre teve nele a mudança dos tempos e o devir; e, talvez por isso mesmo, poucas obras da literatura contemporânea conseguiram, como a deste autor, desvendar os sinais do tempo, sintonizar com as questões essenciais que eles levantam, obtendo, assim, a tão falada dimensão visionária e profética. As obras fundamentais de Hermann Hesse (Peter Camezind, Demian, Siddharta, O Lobo das Estepes e O Jogo das Contas de Vidro) são, por isso, verdadeiros pontos de rotação num percurso que, afinal, revela uma extraordinária coerência. E, no entanto, toda a sua obra remete para uma concepção artística que não faz a mais pequena cedência a um intimismo imediato; pelo contrário, ele procura, em cada romance, definir um universo autónomo, em que as situações, e, em particular, as personagens, sejam elaboradas corporizações das inquietações do autor e da época.
 
As constantes desta obra revelam-se com uma linearidade assombrosa nessa “suma” de uma reflexão e de uma potencialidade criativa crescente que é O Jogo das Contas de Vidro. Aí encontramos a rejeição de uma civilização dominada por princípios materiais e técnicos e pela mediocridade burguesa, o louvor de uma espiritualidade que é apanágio de uma elite intelectual (que, por isso mesmo, se torna o bastião de um inadiável e alternativo percurso civilizacional), a exaltação de um posicionamento contemplativo face ao aparente racionalismo ideológico e activista e, por último, a defesa do individualismo perante os colectivismos massificadores e descaracterizantes. Por tudo isto, esta obra, que não tem entre nós a popularidade de O Lobo das Estepes ou de Siddharta, tem sido considerada como uma das obras essenciais da literatura contemporânea europeia, ao nível, e sem sair do mesmo espaço linguístico, de O Doutor Fausto de Thomas Mann, de O Homem Sem Qualidades de Robert Musil ou de Morte de Virgílio de Hermann Broch.
 
O Jogo Das Contas de Vidro é a descrição de uma Ordem que forma, desde a mais tenra idade, um escol de intelectuais, dedicando-se aos mais variados domínios científicos e artísticos, em total independência económica, e vivendo à margem da sociedade (note-se que a formação desta elite nada tem a ver com a actividade escolar e académica que visa preparar quadros técnicos e intelectuais para a restante sociedade), e que, através do estudo e da contemplação, procura, sem preocupações de aplicação prática, aprofundar os conhecimentos humanos. Cada área de conhecimento tem, em Castália (o lugar abstracto onde se situa a Ordem), as suas escolas e arquivos, assim como o seu Director de Estudos ou Magister. Mas a área mais caracterizante do espírito da Ordem é a do Jogo das Contas de Vidro, um jogo que é, ao mesmo tempo, uma arte e um método e que, através da contemplação, pretende estabelecer uma imagem da “harmonia mundi”, contemporizando e justapondo o maior número possível de saberes. Para a exposição da organização e da história da Ordem, Hermann Hesse resolveu, por estratégia, narrar a vida de um Mestre do Jogo das Contas de Vidro, Josef Knechet.
 
A questão imediata, que esta obra levanta, refere-se à situação temporal desta utopia. De facto, esta utopia não se situa nem no futuro nem num passado desconhecido, mas num “presente oculto” (à margem?) e num “espaço insituável” (na Alemanha?). Os dados para esta definição temporal estão principalmente na Introdução, onde Hermann Hesse estabelece uma espécie de genealogia da Ordem (é bem curiosa a caracterização da “Idade do Folhetim”, isto é, a era histórica anterior à fundação de Castália), nas referências aos grandes vultos da história da cultura, em particular da música (as mais recentes são as dos Grandes Românticos), e a presença de certas inovações técnicas (a rádio, o telégrafo, etc.).Mas, por outro lado, despista-se esta cronologia com elementos medievalizantes (o tempo da duração das viagens, a ambiência dominantemente rural, a concepção da organização da Ordem segundo o modelo das corporações, etc.). Ora, este jogo dialético, entre a História como Presente e o Presente como História, é importante porque revela o essencial da técnica com que Hemann Hesse constitui a “realidade” deste romance.
 
Através dos confrontos, que o “Magister Ludi” Josef Knechet se vê obrigado a efectuar em defesa de Castália, vão aparecendo as questões que Hermann Hesse considerava determinantes no processo civilizacional: a necessária autonomia da vida espiritual em relação a religiosidade, mantendo, no entanto, esta um constante papel vivificador dos valores éticos e metafísicos; a integração dos princípios do pensamento oriental no do Ocidente (e saliente-se que a própria obra de Hermann Hesse é provavelmente uma das que consegue uma mais perfeita e elevada fusão destes pensamentos); a adequação entre ordem e hierarquia e poder criador; as relações árduas entre espiritualidade e vida material. Note-se que este último conjunto de questões é que vai levar Josef Knechet a compreender que a sua Castália não é um paradigma inalterável mas um projecto em mutação, necessariamente contingente e transformável em consequência da intervenção vital do “século”. Daí que esta utopia de Hermann Hesse esteja em permanente evolução, ao contrário das utopias tradicionais que são estáticas, levando Ernest Bloch a situá-la como um exemplo determinante das “utopias modernas históricas”.
 
Perante um livro tão difícil e denso, e que levanta uma problemática na aparência distante, talvez o leitor actual se sinta desmotivado. Mas, se tal acontece, só se pode lamentar, porque é não só um dos livros mais empolgantes ultimamente publicados, nem que seja pela beleza estilística com que o autor pondera algumas questões que têm cada vez maior acuidade, como pela soberba (e árdua) tradução de Carlos Leite.
 
Publicado no Expresso em 1989.
 
 
Título: O Jogo das Contas de Vidro
Autor: Hermann Hesse
Tradutor: Carlos Leite
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1989
445 págs., 21,90 €
 
 
 
 
 


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