quarta-feira, 7 de outubro de 2015

CHIMO


 
 
 
CURIOSAS MISTIFICAÇÕES
 
A história do “aparecimento” de A Voz de Lila de Chimo, que vem narrada nas primeiras páginas da presente edição, justifica-se que seja aqui também contada: o manuscrito apareceu no editor original - a muito respeitável editora francesa Plon - através de interposta pessoa, já que o seu verdadeiro autor não queria ser conhecido. O manuscrito vinha em dois cadernos quadriculados, sem título, com uma letra irregular e - pelo que se vê pela página reproduzida - quase infantil ou de alguém que não está habituado a escrever, com inúmeros erros de ortografia, de pontuação irregular. No próprio editor se colocou a questão de o texto ser uma mistificação de um autor consagrado ou a primeira obra de um escritor desconhecido.
 
De qualquer modo, estes dados - mesmo expressos pelo editor original sem pretender um exclusivo e óbvio interesse promocional - provocam inevitavelmente uma “contaminação” do olhar do leitor: ele fica “agarrado” pela génese intrigante do texto e na sua leitura haverá sempre a subreptícia interrogação sobre qual o estatuto do autor. Além disso, não se sabe com segurança se não foi o editor - tal como fez com o título do romance - que decidiu que Chimo é o autor. Não terá o editor original aceite de um modo pacífico a já clássica confusão entre autor e narrador?
 
Assumindo, no entanto, esta identificação feita pelo editor original, o leitor fica a saber pelo texto de A Voz de Lila que o autor tem dezanove anos, é desempregado e eventualmente de origem árabe, vivendo num dos subúrbios miseráveis de Paris e nos limites da sobrevivência. Pela sua própria existência, esta obra incute no leitor a ideia de que está perante um texto de um autor radicalmente exterior à instituição literária (obras deste tipo - é o seu principal mérito - levam a uma certa questionação do que se entende hoje por este conceito) e que, portanto, terá de ter em consideração esta origem ao ponderar e fruir o texto em si. É nesta promiscuidade, entre a origem social do autor e um texto que se apresenta como literário, que existe uma situação “mistificadora” nesta obra, visto que desregula os critérios que delimitam os universos literários dos não-literários. 
 
Dir-se-á que todos os grandes autores começaram assim. Mas isso é obviamente um equívoco: o que eles fizeram foi explorar caminhos próprios, nos campos possíveis da semântica e da retórica, de forma a construir uma linguagem que, na sua concepção, desbrave em profundidade a realidade, tornando cada vez mais abrangente a instituição literária. Isto é, aquilo que Michel Leiris definia pela expressão bem conhecida de “a arte como tauromaquia”. De qualquer modo, partindo do princípio que as delimitações da literatura têm a elasticidade da sua prática, nunca ninguém questionou, desde a Antiguidade, que, subjacente a qualquer produção artística, tem que existir um domínio técnico, desenvolvendo o autor, de acordo com as suas estratégias criativas, esse domínio. Ora, o que Chimo permanentemente reafirma de forma explícita em A Voz de Lila é a sua insuficiência no domínio da linguagem. De facto, todo o romance é construído em estreitíssimos limites semânticos e sintáxicos (aquilo que Chimo chama, numa boa expressão, “a gaiola das palavras”), parecendo que todas as imagens e metáforas são mais resultantes da insuficiência do que de qualquer domínio da retórica. Será que nestas circunstâncias ainda podemos estar a falar de literatura como expressão artística?
 
Quem tenha feito trabalho cultural nos “desertos de cimento” dos mais degradados bairros sabe que as condições de descaracterização e as angustiantes necessidades de sobrevivência brutalizam a tal ponto, que não é lícito perspectivar que alguma regra ou valor tenha correspondência com os dos universos exteriores àqueles meios. É por isso que, quando alguém nestes meios pretende exprimir-se “artisticamente”, não tem, quase sempre, os instrumentos (emocionais e técnicos) para o fazer e, por consequência, só o consegue realizar com soluções tão estereotipadas que se tornam absurdas e inesperadas, tendo em conta o lugar de onde vêm. Nesse sentido, uma figura como Chimo, que sempre viveu este ambiente de extrema carência, possuir uma lucidez tão grande sobre o seu meio (algumas situações descritas em A Voz de Lila são exemplares na tipificação dos limites a que pode chegar a degradação social), sobre a dimensão de irremediável exclusão social que ele provoca (é o caso da consciência, várias vezes reafirmada, da sua apertada e dolorosa “gaiola de palavras”), e, ao mesmo tempo, sentir um tão grande impulso para redimir a sua situação através de uma escrita que se confronta com a sua própria autenticidade, é tão pouco plausível que dá argumentos a todos os que acusam esta obra de mistificação.
 
Um dos aspectos interessantes de A Voz de Lila é, no entanto, a caracterização do comportamento sexual e erótico da personagem principal, próxima das retratadas em muitas outras obras de jovens autores oriundos de diversas literaturas. Pode-se mesmo afirmar que a literatura está aqui a testemunhar a gradual generalização de um comportamento erótico assumidamente enraizado no desejo e no prazer, em que os sentidos e o imaginário se sujeitam ao “império da pele” e do sexo, libertos de qualquer noção previsível de interdito. Por isso, falar de “voyeurismo”, de exibicionismo ou de onanismo verbal, ou, de forma genérica, de comportamento perverso em relação ao modo como Lila se afirma eroticamente, é não entender como estas classificações pertencem a uma concepção da sexualidade bem distante do polimorfismo com que ela, de uma forma libertária, cada vez mais se assume hoje. Nesse sentido, é interessante perceber como os “discursos” com que Lila reproduz ou fantasia o seu próprio prazer, partilhando a perturbação do “lembrar”, do “imaginar” e do “ver” entre si e o seu interlocutor amoroso, fazem uma unidade com o acto sexual propriamente dito e amplificam, através de um efeito dialéctico, a sua produção de prazer. É por isso que a única mancha que se detecta nesta muito boa tradução é a solução adoptada para traduzir o título original, Lila dit ça, porque se perde em português a noção que a transfiguração física que o orgasmo parece criar, dando uma ilusória sensação de plenitude existencial, está “inscrita” no que Lila diz e no modo como o diz.
 
Publicado no Público em 1997.
 
 
Título: A Voz de Lila
Autor: Chimo
Tradutor: Maria Jorge Vilar de Figueiredo 
Editor: Editorial Presença
Ano: 1997
121 págs, esg.



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