sexta-feira, 2 de outubro de 2015

E. L. DOCTOROW 2

 
 



O DETECTIVE TEOLÓGICO
 
Creio que o primeiro aspecto a referir, numa recensão à edição portuguesa de A Cidade de Deus, de E. L. Doctorow, é que este autor, com uma dezena de títulos publicados, é considerado, com Philip Roth e Don DeLillo, um das figuras mais proeminentes da sua geração, dentro da chamada “escola nova-iorquina”, e uma referência da cultura americana do último quartel do século XX. Tendo iniciado a sua carreira literária no início da década de sessenta, com a publicação do seu romance Welcome to Hard Times, foi com o seu terceiro livro, O Livro de Daniel, centrado no caso Rosenberg, e publicado em 1971, que E. L. Doctorow obteve reconhecimento público pelo seu trabalho literário. A partir dessa altura, conquistou, à excepção do Pulitzer Prize, todos os mais importantes galardões literários americanos, devendo assinalar-se, como suas obras mais marcantes, para além das já citadas, os romances Ragtime, Feira Mundial, Billy Bathgate e Estação das Águas (todos já traduzidos para português).
 
Numa pretensão de sintetizar o conjunto da obra de E. L. Doctorow, pode afirmar-se que esta foi efectuando, de uma forma não programada, uma análise da vida social, cultural e política americana desde meados do séc. XIX até à actualidade: de facto, todos os seus romances se passam em épocas históricas diferentes, centrando-se em eventos ou personagens mais ou menos colaterais da história social dos Estados Unidos, e, a partir de uma trama mais ou menos escassa, procuram transmitir uma visão global da sociedade de um determinado período. Porém, a ambição deste narrador não fica por aqui: é que, no seio desta componente histórica forte (não admira, por isso, que apareçam habitualmente nos seus romances, entrançadas na acção narrativa ou como espectros tutelares, figuras históricas decisivas da cultura universal) está sempre presente o intuito de expressar uma interpretação globalizante sobre uma fase precisa do percurso recente da civilização ocidental. Talvez se perceba, por isso, uma outra característica do conjunto da obra narrativa de E. L. Doctorow: o pendor para impregnar toda a acção romanesca de uma reflexão filosófica que oriente o leitor para as implicações últimas da problemática das personagens ou dos eventos descritos. Deve, contudo, salientar-se que esta componente “filosofante” da obra de E. L. Doctorow está associada a uma peculiar argúcia descritiva da diversidade da realidade social e a uma inegável capacidade de construir personagens complexas e aliciantes, tudo isto sustentado por uma expressiva riqueza semântica, ao ponto deste autor ser considerado como um dos mais brilhantes estilistas da literatura americana contemporânea.
 
No contexto da obra narrativa de E. L. Doctorow, A Cidade de Deus nada inscreve de muito inovador. Talvez as únicas diferenças sejam uma trama, passada nos dias de hoje, ainda mais distendida do que é habitual (e que apenas serve como fio condutor justificativo de toda a reflexão: certo dia, o sacerdote da igreja de St. Timothy, na East Village de Manhattan, descobre que a cruz de bronze do seu altar é roubada, aparecendo numa pequena sinagoga do Judaísmo Evolucionista da West Ninety-eighth Street, facto este, aparentemente inexplicável, que deixa intrigado um escritor amigo do diácono e do rabino) e uma reflexão fragmentária e desarrumada, como peças de um puzzle que o leitor será forçado a encaixar para lhe descobrir o sentido, e apresentada através de uma panóplia incrível de meios (que vão desde as letras de canções já clássicas da música ligeira, glosadas ao modo das “jazz-sessions”, de poemas de cariz whitmaniano, de fictícios “cadernos de memórias” – entre outros, de Einstein e Wittgenstein -, de “e-mails”, de orações, de “narrativas de vidas”, etc., etc.), ao ponto do romance aparecer ao leitor como uma espécie de “pot-pourri”, por vezes dispersante e até fatigante.
 
No entanto, a pouco e pouco, o leitor vai percebendo que existe uma ordem subjacente neste aparente caos narrativo e cuja pista inicial é, de imediato, dada pelo título do romance. De facto, A Cidade de Deus tem, simplesmente, a magna ambição de confrontar a presente situação do homem com a reflexão filosófica de Santo Agostinho, exposta na sua obra homónima, e que aqui assume o lugar de matriz ideológica da civilização ocidental. Todo o trabalho que a personagem principal – o escritor que, de um modo assumido, aparece como “alter-ego” de E. L. Doctorow - efectua ao longo das páginas do romance, é procurar perceber se ainda é compreensível a graça omnisciente de Deus na actual ordem universal ou, por outras palavras, se existe ainda lugar para a revelação pela fé no presente contexto dos conhecimentos racionais. Para compreender o profundo sentido desta investigação, A Cidade de Deus não só interroga os fundamentos da fé nas principais correntes religiosas ocidentais (o cristianismo e o judaísmo) como elabora uma espécie de exegese dos diversos parâmetros em que se enquadra o percurso actual da Razão (desde a cosmologia à física, desde a história à filosofia, desde o cinema à música ligeira).
 
De facto, as interrogações essenciais, que atravessam A Cidade de Deus, relacionam-se com a questão milenar de saber se é do tecido de conhecimentos, que caracteriza a natureza humana, que emana a narrativa de Deus (e, se assim for, a fé perde o seu sentido como instrumento de revelação) ou, pelo contrário, se a ordem universal (integrando-se neste conceito, obviamente, todas as “realidades” possíveis) é ainda, como sempre foi, “a cidade de Deus”. Porém, seja qual for o percurso desta demanda, o resultado parece ser inevitavelmente uma “ausência” ou uma “desfiguração”: nem na caotica narrativa dos saberes nem na configuração da ordem actual (e o romance passa em revista o Holocausto, a Guerra do Vietname, alude à presente situação ambiental e, por fim, descreve, com um sentimento misto de empolgamento e terror, a perigosa babel em que se transformou Nova Iorque – que aqui assume o lugar de concretização simbólica da graça divina) é possível antever a vontade demiúrgica da construção equilibrada do Universo.
 
Numa obra que procura abarcar um conjunto tão diversificado de informações e problemáticas, natural é que apareçam páginas bastante estimulantes em termos de reflexão, nem que seja pela sua dimensão provocatória. Saliento, a título de exemplo, as que se debruçam sobre o cáracter contraditório (e talvez hipócrita) do projecto ecuménico, uma vez que este, ao procurar despojar-se da tradição doutrinária que sustenta as Igrejas, na busca de atingir a imagem universal de Deus, se transforma num projecto suicidário destas. Ou ainda os trechos consagrados ao cinema, onde, imprevistamente (E. L. Doctorow é um autor que tem sido bem tratado pelo cinema, no sentido em que diversos títulos seus foram transpostos para esta linguagem com inegável sucesso público e da crítica), a personagem principal tece violentas críticas, considerando que esta arte, com a sua ambição de tudo virtualizar, “implode o discurso, rouba expressão literária ao pensamento, trata de reduzi-la ao significado composto de impressão, intuição ou compreensão pré-verbal”.
 
Creio que ficou bem claro a invulgar ambição de A Cidade de Deus e como procura aproximar-se de alguma problemática nuclear do nosso tempo. A sua inquestionável importância obriga a que se recomende, numa futura edição portuguesa, a rever uma ou outra solução menos ajustada de tradução (que, no entanto, no seu conjunto, e dada a complexidade do original, nos parece positiva), assim como algumas gralhas incómodas, e, muito em particular, a introduzir, com sensatez, algumas notas editoriais que permitam clarificar o texto em relação algumas especificidades socioculturais mais difíceis de apreender por um leitor comum.
 
 Publicado no Público em 2002.
 
 
Título: A Cidade de Deus
Autor: E. L. Doctorow
Tradução: Lucília Maria de Deus Mateus Rodrigues
Editor: Publicações Europa-América
Ano: 2002
299 págs., esg,
 
 


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