sábado, 31 de outubro de 2015

MARIANNE FREDRIKSSON


 
 

HISTÓRIAS SENTIMENTAIS

 
Quem tem acompanhado o percurso no último século da literatura sueca sabe que a sua narrativa, durante os anos cinquenta a setenta, foi dominada por preocupações sociais e políticas. Essa corrente, habitualmente conhecida, talvez com um pouco de ironia, com o nome de “literatura proletária”, teve tal ascendente neste país (pode dizer-se que não houve literatura de nenhum outro país do Ocidente onde estas preocupações fossem tão hegemónicas) que levou, os mais pessimistas, a recear que a literatura, na sua concepção mais abrangente, tivesse definhado de todo na Suécia. É evidente que esta obsessão literária com as questões sociais e políticas tem razões culturais e geoestratégicas; porém, deixando de lado a questão falaciosa de compreender a motivação desta atitude ideológica e estética, é inquestionável que corresponde à generosidade e abertura que o povo sueco tem revelado, na segunda metade do séc. XX, em favor dos que, por razões políticas, têm sido oprimidos e perseguidos em todo o mundo. De qualquer modo, foi só a partir dos finais da década de setenta que apareceu uma geração literária com outros interesses temáticos, retomando a tónica de uma maior reflexão sobre as especificidades do discurso literário e mais empenhada na compreensão das complexidades dos universos sensíveis do homem contemporâneo.

 
Marianne Fredriksson, a autora de Duas Mulheres, Um Destino (versão portuguesa, francamente banal, de um título, cuja tradução literal teria, na nossa opinião, mais intensidade poética), pertence - a autora começou já tarde, com perto de sessenta anos, a sua actividade literária - à transição entre as duas gerações referidas. Depois de uma vida dedicada ao jornalismo, Marianne Fredriksson conseguiu obter na última década um inegável sucesso popular e crítico com a sua produção romanesca. Hoje, com mais de doze títulos publicados, a autora não só é considerada uma das figuras de maior relevo editorial e literário no seu país, como a que tem maior projecção internacional, estando já traduzida e publicada em cerca de 150 países.

 
Este enquadramento talvez ajude a compreender a obra desta autora, em particular o seu interesse pelo percurso histórico das mulheres na sua luta pela emancipação e pela afirmação cultural, social e política: saliento, por exemplo, o seu romance mais conhecido (e também já editado pela Presença), As Filhas de Hannah. O presente romance, Duas Mulheres, Um Destino, apresenta-se, de certo modo, como uma pequena variante à problemática do anterior. Aqui, as personagens centrais são duas mulheres, já na terceira idade, vivendo sozinhas na Suécia, mas que têm uma origem geográfica e um universo cultural bem distintos: uma, como a autora, é sueca, vivendo da sua produção literária; a outra, chilena, exilada, depois de ter fugido às perseguições políticas perpetradas no seu país após o golpe militar que derrubou Salvador Allende.

 
Este esquema narrativo, simples e já muito visto, permite a autora demonstrar duas coisas na aparência contraditórias: por um lado, revelar que existe uma certa “malaise de vivre”, resultante do actual estatuto da condição feminina, seja quais forem as circunstâncias históricas, económicas e culturais que condicionam as experiências de vida e as atitudes comportamentais; por outro, que a História, de forma inevitável, irrompe na esfera do privado, condicionando afectos, originando obsessões e fobias, arrastando para profundas mágoas ou propiciando comoventes alegrias. No fundo, é como se os fluxos da história social e da história pessoal fossem as duas faces do mesmo manto de água, correndo para a inevitável foz da morte e tornando qualquer existência ao mesmo tempo única e irrelevante.

 
Aparentemente, portanto, parece que a obra de Marianne Fredriksson se enquadra na chamada literatura feminina (ou, aceitando um jargão demasiado conotado, femininista). Porém, creio que não é neste facto que assenta o sucesso editorial desta autora. Os motivos deste sucesso prendem-se, a nosso ver, com a tentativa da autora em definir as suas personagens, numa perspectiva estritamente emotiva e sentimental, apegada à sua experiência privada e como, nesta esfera, se “defendem” dos condicionalismos, mais ou menos violentos, da História, soberanizando-se em termos emocionais. No fundo, a escritora parte da convicção – bastante generalizada na sua geração – de que só existe progresso social resultante do conjunto das “libertações individuais” e do afrouxamento das diversas dependências pessoais, num quadro ideológico que é uma resultante hibrida de progressismo social e político e de ética cristã.

 
É inquestionável que Marianne Fredriksson consegue transmitir alguma convicção romanesca nesta sua tentativa de “olhar” a História, sem nunca abandonar o nível das histórias pessoais. Simplesmente, nesta tónica de definir as suas personagens pelos seus contornos sentimentais e emotivos existe o perigo da sua produção narrativa resvalar para uma “pieguice” ludibriante (em Duas Mulheres, Um Destino, sem dúvida um dos menos conseguidos desta autora, há, por vezes, algumas situações que raiam o mau-gosto e que parecem entrar nos parâmetros do subproduto narrativo a que os norte-americanos chamam as “romance novels”). Daí, o esforço da autora, nas suas melhores páginas, em conter-se, em termos estilísticos, num registo sóbrio e seco, pouco adjectivado, e, paralelamente, em estruturar a narrativa em graduações de doseamento dramático que permitam reter a atenção do leitor.

                                                          
Publicado no Público em 2002.
 
 
(Foto da Autora de Anne Fredriksson)
 

Título: Duas Mulheres, Um Destino
Autor: Marianne Fredriksson
Tradução: Margareta Ek Lopes
Editor: Editorial Presença
Ano: 2002
211 págs., esg.

 





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