O DESARMAMENTO MORAL
A publicação recente do romance
Amor Sem Tempo da escritora A. L. Kennedy permite destacar dois aspectos
interessantes da actual vida literária britânica: a crescente afirmação de
centros de irradiação cultural ao nível de cada nacionalidade do Reino Unido e
a irredutível importância do humor como fermento criativo da sua narrativa.
Desde sempre que cidades como Edimburgo, Glasgow ou Cardiff tiveram uma vida
cultural significativa e núcleos de narradores e poetas que marcaram a história
literária inglesa; simplesmente - e esta parece ser a mudança de atitude -
estes centros literários (e os escritores que os animam, como é o caso de A. L.
Kennedy) procuram hoje afirmar, de forma empenhada, a sua autonomia em relação
a Londres e a uma certa propensão hegemónica inglesa. Por outro lado, o
trabalho narrativo desta recente autora (nasceu em 1965 e o seu primeiro livro,
uma colectânea de “short-stories”, foi publicado em 1990), em consonância com
as obras de outros novos escritores escoceses, galeses e também ingleses, vem
confirmar que o humor e a sátira continuam a ser um dos filões mais explorados
e inovadores da narrativa britânica.
Desde muito nova que A. L.
Kennedy se tem desdobrado em actividades literárias, colaborando, com recensões
críticas, nos principais jornais e revistas escoceses e ingleses, participando
em júris literários, ensinando em cursos de “escrita criativa”, animando as
principais instituições literárias escocesas e ainda editando antologias de
“short-stories” de jovens escritores da sua terra. Ao mesmo tempo, de forma
ininterrupta, tem publicado diversos livros, onde se destacam, até hoje, três
colectâneas de contos e três romances. Todas as suas obras de ficção têm sido
premiadas com o Scottish Arts Council Book Award, para além de outros prémios
(o John Llewellyn Rhys Prize, o Somerset Maugham Award e o Encore Award).
Porém, provavelmente, o maior reconhecimento público (tanto na Grã-Bretanha
como nos Estados Unidos) da obra de A. L. Kennedy tenha sido resultante da sua
nomeação, por duas vezes, em 1993 e em 2003, para a lista dos melhores jovens
escritores ingleses que a prestigiada revista britânica Granta selecciona de dez em dez anos.
Amor Sem Tempo é o
segundo romance desta escritora e foi publicado em Inglaterra em 1995 com o
título So I Am Glad. E, logo no título, advem a minha primeira
objecção à edição portuguesa deste romance. Creio, realmente, que não é fácil
conceber uma versão portuguesa do título original que transmita o misto de
ironia e perplexidade que este provoca no leitor; mas, seguramente, nada disto
é conseguido com o banal e insípido título de Amor Sem Tempo.
O romance tem, como narrador e
personagem principal, uma locutora de rádio que partilha a casa com uns amigos,
homens e mulheres, com formação e forma de estar bem distintos, mas tendo todos
em comum um abissal desinteresse pelos modelos de vida padronizados e um
gradual desencanto por um quotidiano que lhes aparece cada vez mais desprovido
de sentido e incapaz de lhes transmitir qualquer tipo de compensação emocional
e afectiva. Um deles - que habitualmente está no estrangeiro em operações
altruístas, motivadas por um idealismo confuso e sentimental - cedeu o seu
quarto a um (des)conhecido, muito estranho, com quem a personagem principal é obrigada
a conviver, já que é a única, entre aquelas figuras, que passa algum tempo em
casa. É esse convívio que vai dar origem a uma aproximação afectiva e também a
uma descoberta muito insólita: é que este estranho é, nem mais nem menos, do
que o ressuscitado Savinien Cyrano de Bergerac, o conhecido escritor e
aventureiro francês que viveu no séc.XVII.
Até nesta apresentação reduzida
da trama de Amor Sem Tempo se pode perceber qual é a opção estratégica de
A. L. Kennedy: introduzir, num enredo bem enraízado no quotidiano e no seio de
personagens comuns, um elemento historicamente “deslocado”, quase “milagroso”,
que permita evidenciar a bizarria de destinos e comportamentos banais e, desse
modo, o profundo “non-sense” da época que vivemos. Mas, ao mesmo tempo, e este
é um dos factores mais inovadores deste romance, esta “intromissão” serve para
transmitir ao leitor a consciência certa de que está a ler um romance, quer
isto dizer, um código arquitectado por um autor, onde, portanto, tudo aquilo
que ele pretenda introduzir nesse código pode aparecer e suceder.
Saliente-se que A. L. Kennedy
não se cansa de evidenciar esta perspectiva do romance ao longo de toda a
narrativa. Daí que se sucedam constantemente, por parte da narradora, os avisos
ao leitor de que está a ler um romance: com alguma ironia, aparecem as
sugestões de que, determinada passagem da acção, por ser demasiado
imprevisível, se torna “aceitável” que o leitor não “acredite” nela, ou, noutro
trecho, o conselho de que, se o leitor achar que é demasiado brutal ou obsceno,
pode “fechar os olhos” e passar adiante, ou ainda outro onde a narradora
assinala as suas dúvidas sobre aquilo que vai narrar ou sobre o modo como o
narra, etc., etc. Em resumo, todo a obra não passa de um verdadeiro jogo do
“gato e do rato” com as próprias convenções clássicas do romance, exigindo do
leitor uma atitude dúbia, onde, por vezes, é obrigado a assumir os princípios
miméticos da narrativa e, por outros, percebe que a obra deles foge, num
equilíbrio instável, mas bem irónico, entre realidade e fantasia.
A própria introdução da figura
de Cyrano de Bergerac num quotidiano vulgar na Grã-Bretanha dos dias de hoje é
deixada, pela narradora/autora, em extremo absurdo, ao livre arbítrio do leitor
de acreditar ou não, já que o modo como se “resolve” tão intrigante “aparição”
não pretende ser convincente. Para a autora, o que é importante é que o leitor
compreenda que este “milagre” é fundamental para a narradora, visto que, de
certo modo, é a única forma de “redimir” a sua existência, pois que a sua
sensibilidade está “desfigurada” (e, de certo modo, aviltada) por uma
civilização que eticamente se desqualificou e que, por isso mesmo, motiva
comportamentos e relações desprovidos de sentido. Cyrano de Bergerac, com os
seus princípios de honra e de livre-pensador, vem provar até à saciedade como a
nossa época vive um enorme “desarmamento moral” (a expressão é de A. L.
Kennedy), tornando a presente sociedade um lugar de risco e de perigo. Num
certo sentido, a figura de Cyrano de Bergerac representa também o estatuto que
a literatura pode (ou deve) ocupar nos dias de hoje: contribuir para um código
ético alternativo ao dominante, de forma a construir a carapaça de resistência
necessária para criar um espaço pessoal de liberdade.
Amor Sem Tempo transmite,
por conseguinte, uma imagem muito cáustica do presente (e na sua trama aparece
de tudo um pouco: abusos sexuais de menores, relações sadomasoquistas,
dependência e desintoxicação de fármacos, a violência gratuita de uma
comunicação social sedenta de sangue e de catástrofes, a condenação de um
absurdo Estado, ao mesmo tempo, omnipresente e inútil, etc., etc.), bem
similar, diga-se de passagem, à que também aparece, se bem com contornos
ideológicos distintos, nas obras do escritor francês Michel Houellebecq.
Contudo, o verdadeiro sinal
distintivo de A. L. Kennedy como autora está na sua originalidade estilística,
já que a sua vertente satírica e alguma da sua capacidade metaforizante
conseguem encaminhar a narrativa, e a reflexão que lhe subjaz, para percursos
inusitados, problematizando, de uma forma implacável, certos temas (entre eles,
por exemplo, os chamados “bons sentimentos”, como o amor e a esperança) a
partir de perspectivas peculiares e imprevisíveis. Neste aspecto, a única
grande fragilidade de Amor Sem Tempo é uma certa propensão
para a verbosidade discursiva, sendo inúmeras vezes notório que a autora
deveria ter optado, em termos estilísticos, pela mesma contenção e rigor que,
de uma forma exemplar, assume na sua visão ética da actual sociedade.
Por tudo isto, creio que se
torna compreensível que a tradução deste romance não seja tarefa fácil,
exigindo uma excepcional preparação para a sua realização. É bem evidente que
houve esforço na presente tradução; mas, por isso mesmo, torna-se ainda mais
lamentável o seu relativo falhanço. Creio que este resultado é, no essencial,
devido a dois factores: o primeiro, comum a muitas outras traduções, é
resultante da sintaxe da língua de chegada se revelar, não poucas vezes,
demasiado próxima da sintaxe matricial; por outro, porque as opções semânticas
do tradutor não conseguiram corresponder à versatilidade e riqueza estilística
do autor, “aplanando” onde deveria deixar “rugoso” e diverso.
Publicado no Público em 2002.
Título: Amor Sem Tempo
Autor: A. L. Kennedy
Tradução: António Reca de
Sousa
Editor: Difel
Ano: 2002
277 págs., € 14,00
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