sexta-feira, 6 de novembro de 2015

KATHRYN HARRISON

 
 
 
 
 

A NATUREZA DO SEXO
 
A escritora Kathryn Harrison é conhecida em todo o mundo – e, decerto, sê-lo-á por mais alguns anos e por mais alguns títulos que publique – como autora de uma obra autobiográfica centrada na relação incestuosa que manteve com o pai, a partir dos vinte anos, intitulada, na edição portuguesa, O Beijo. No entanto, é pena que esta escritora norte-americana de quarenta anos - e que, desde os inícios dos anos noventa, já publicou, para além da obra referida, mais quatro romances - veja toda a sua produção literária “ofuscada” pelo escândalo provocado por um único título. Tanto mais que ninguém pode considerar O Beijo como uma obra gratuitamente escandalosa, já que se articula de uma forma coerente com a restante actividade romanesca da autora e, de certo modo, pode ser assumida como uma “chave” que a permite compreender.
 
De facto, o estatuto peculiar que Kathryn Harrison tem hoje na literatura norte-americana advém de toda a sua obra, até hoje conhecida, se argamassar em redor do núcleo temático da obsessão sexual, procurando abordá-la por diversas perspectivas, de forma a perceber como se motiva e constrói - afrontando muitas vezes os fundamentos da “normalidade” social - até à dependência e desagregação de quem a sofre. Para isso, a autora tem recorrido ao romance histórico, muitas vezes em espaços geográficos e civilizacionais bem distantes do seu, com o intuito de demarcar melhor os contextos da sua génese. Além disso, Kathryn Harrison desenvolve esta temática num estilo despojado, de frase curta e seca, descritivo quase ao nível da alusão impressiva, que contribui para evidenciar comportamentos aparentemente desajustados, mas que correspondem a impulsos profundos das personagens que inventa.
 
A Mulher Foca, o último romance da autora, publicado agora no nosso país pela mesma editora das restantes obras já traduzidas (a já referida obra autobiográfica O Beijo e o romance A Cadeira do Suplício), situa-se no inóspito Alasca, por alturas da I Guerra Mundial, quando esta região se tornou um território dos Estados Unidos e era apenas povoada por diversas tribos de esquimós, caçadores de peles, pesquisadores de ouro, ferroviários, etc., de origem principalmente russa, e começava a ser colonizado pela população americana. Diga-se de passagem que o estilo da autora, já caracterizado, descreve de um modo admirável essa população rude, alimentando-se de todo o tipo de caça e de residuais produtos que a “civilização” para lá exporta, e suportando as condições precárias de vida à custa de se manter permanentemente “ensopada” em álcool “martelado”, numa Anchorage ainda só constituída por meia dúzia de ruas, lamacentas e geladas, rodeada de casebres de madeira e tendas.
 
A trama de A Mulher Foca desenvolve-se em redor de um meteorologista americano deslocado para um observatório situado nos arredores da cidade e da sua fixação erótica por uma mulher aleuta (tribo esquimó originária do arquipélago dos Aleutas, no norte do Alasca). As personagens são bem caracterizadas (por um lado, um homem, com formação científica, habituado, mesmo naquelas duras condições, a um trabalho metódico e empenhado de interpretação da Natureza, e uma mulher, oriunda de uma civilização radicalmente distinta, que não fala e pouco percebe dos sinais e códigos quotidianos - objectos, comportamentos – do seu amante), conseguindo a autora demarcar, até aos limites da plausibilidade, a distância abissal dos seus elementos de referência e a existência, entre elas, de mínimos elos de conexão.
 
Por um lado, este contexto histórico e geográfico, hostil e carente (onde o elemento feminino escasseia), permite a Kathryn Harrison colocar o desejo masculino ao nível das manifestações básicas de sobrevivência e evidenciar, com objectividade, a sua componente orgânica, de excitação física, despojando-o de qualquer tipo de sentimentalidade ou de qualquer sofisticação erótica: a pulsão sexual é representada como uma espécie de inscrição da Natureza que, por ciclos de fluxos e refluxos, irrompe e se ramifica no corpo da personagem principal, da mesma forma que as turbulências climáticas se manifestam no planeta – verdadeiras emanações da vontade divina - e que o meteorologista transcreve, pacientemente, para fórmulas e registos, como uma espécie de “escriba” de Deus.
 
Por outro, este contraste civilizacional e cultural entre o meteorologista e a aleuta permite destacar uma das motivações, segundo a autora, da excitabilidade sexual masculina: a opacidade do outro. De facto, o desejo da personagem principal apresenta-se como um impulso orgânico para desbravar o irredutível amâgo da mulher que ele não consegue entender (daí a sua constante perplexidade perante os orgasmos da esquimó e um comportamento, inclusive sexual, que lhe parece “branco” e neutro), mas que também não o aceita (nem a sua linguagem, nem os seus códigos sexuais, nem, por fim, os seus interesses culturais ou as suas opções civilizacionais), e que, por isso mesmo, aparece aos seus olhos como mergulhada numa inquebrável redoma animal. No fundo, a motivação e o sentido da sua abordagem sexual são similares ao que impele a personagem principal (num dos trechos mais conseguidos e interessantes do romance) a aproximar a mão de uma foca em sofrimento, fascinado pelo seu olhar vítreo de resignação.
 
A Mulher Foca é, sem dúvida, pela ambiência e pela fascinante (e até intrigante) dimensão peculiar das personagens, assim como pelo seu estilo e construção narrativa, um dos romances mais aliciantes recentemente publicados no nosso país.
 
Publicado no Público em 2002.

(Foto da Autora de Robert Birnbaum).
 
Título: A Mulher Foca
Autor: Kathryn Harrison
Tradução: Isabel Fernandes
Editor: Bizâncio
Ano: 2002
218 págs., € 14, 13
 
 


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