quinta-feira, 26 de novembro de 2015

MARGARET MAZZANTINI


 
 
 
 
A CINZA DA VELHICE
 
Há alguns anos, num serão de cavaqueira, um amigo meu, face aos meus rasgados elogios à literatura italiana contemporânea, respondeu que esta era, na sua opinião, sentimental e dramática em excesso. Na altura, reagi um pouco abespinhado, afirmando que não percebia o que queria dizer com aqueles termos e que, além disso, aquele tipo de afirmações generalistas tem o condão, quase sempre, de mais errar do que acertar. O que é certo é que, ao ler este romance intitulado Não Te Movas de Margaret Mazzantini, veio-me à lembrança esta velha conversa; de facto, é difícil escrever um romance onde o sofrimento e a morte estejam tão presentes: acidentes rodoviários, filhos em coma, violações, abortos, mortes por cancro e por outras causas, desagregação de relações amorosas e conjugais, velhice e mais velhice.
 
Margaret Mazzantini é uma recente autora italiana que, em paralelo com uma brilhante carreira como actriz, principalmente no teatro, mas também no cinema e na televisão, encetou uma não menos brilhante carreira como romancista e dramaturga. Já publicou dois romances, ganhando com o primeiro, Il catino di zinco, o Prémio Campiello de 1994, e com este que agora foi editado em Portugal, o Prémio Strega de 2002; isto é, com as duas únicas obras que publicou, conquistou os dois mais importantes prémios literários italianos. Se associarmos a esta consagração, o enorme sucesso de vendas que obteve, em particular com o segundo romance, pode considerar-se que era impossível perspectivar um início de carreira literária mais fulgurante do que aquele que teve.
 
Saliente-se ainda que a aposta da literária de Margaret Mazzantini em Não Te Movas é arriscada: a autora pretendeu escrever um melodrama. Ora, a literatura narrativa, mesmo tendo em conta o peso da corrente realista, não tem uma grande tradição melodramática. Na minha opinião, porque o melodrama assenta num frágil jogo de artifício (em que situações inverosímeis têm que parecer verosímeis), necessitando, por isso, de um suporte (a imagem, a música, a retórica da iluminação artificial) para que consiga atingir os seus objectivos. Nesta perspectiva, o ascendente do efeito mimético da arte narrativa coaduna-se dificilmente com o “puzzle” de acasos ou com a exploração exaustiva da dimensão trágica das situações que são decisivas, no melodrama, para atingir o clima emocional necessário para que o leitor aceite como plausível a matéria narrada.
 
Assim, no caso deste romance, a própria situação de fundo (em que o narrador, enquanto espera pelo resultado de uma intervenção cirúrgica, realizada de urgência à sua filha, vítima de um grave acidente de motorizada - e, portanto, sob a enorme tensão da expectativa de saber se vai sobreviver -, “confessa” uma boa parte da sua vida amorosa e, em particular, a sua relação atribulada e trágica com uma amante) é, objectivamente, muito pouco plausível. Por outro lado, a recorrência constante à coincidência de factos (por exemplo, as situações de gravidez simultânea da mulher e da amante e o destino de todo antagónico das duas fecundações) faz com que o leitor se interrogue sobre o seu carácter credível. Por outro lado, há, sem sombra de dúvidas, situações narrativas mal resolvidas, tendo em consideração a definição caracterial das personagens: saliento, por exemplo, a cena crucial da violação, que, de certo modo, é inexplicável, ou ainda o contexto da uma última relação sexual entre o narrador e a amante, de inegável efeito dramático, mas, ao mesmo tempo, e de forma notória, artificioso.
 
Não se julgue, porém, que o reconhecimento de algumas fragilidades narrativas de Não Te Movas o torna menos interessante. Pelo contrário, e salvo as já referidas situações inexplicáveis, é raro encontrar uma obra de uma autora que procure, de um modo tão intenso, compreender o universo masculino, em particular as vertentes sempre obscuras do seu comportamento sexual e dos seus mecanismos de afirmação do desejo. De facto, o posicionamento de Margaret Mazzantini é o de se colocar ao lado dos homens, tentando entender o seu teatro de fantasmagorias, em grande parte motivado pela permanente expectativa de uma inevitável solidão, e como a sua sexualidade e o seu desejo são ainda algumas das poucas armas com que procura convencer-se que consegue erradicar esses fantasmas. No fundo, o homem aparece, em Não Te Movas, em constante projecção para a(s) figura(s) feminina(s) (mãe, mulher, amante, filha), sendo, em si mesmo, uma espécie de buraco negro delineado por elas.
 
Pode, por isso, afirmar-se que o romance de Margaret Mazzantini parece situar-se num estádio em que já se superou o ajuste de contas com a entidade masculina, exemplificada aqui por um narrador que reconhece que o acaso e as opções o encaminharam para uma situação de falência como marido, amante e pai, envolvendo-a num clima afectivo de resignada aceitação às suas peculiares tibiezas. Nesse sentido, Não Te Movas é um romance sobre a velhice – ou melhor, sobre o despojamento do desejo como mecanismo preparatório para a morte – e, muito em particular, um lamento pungente sobre a passagem do tempo: a súplica “não te movas” que dá título ao romance e que aparece, em estilo encantatório, de forma cíclica, na narrativa (traduzida, numa incorrecta duplicidade de critério, pela expressão “não te mexas”), relaciona-se com essa necessidade, ansiada pelo narrador, de cristalizar num momento “pré-catastrófico” a passagem das horas e dos dias. É nesta tão humana obsessão de parar o escorrer dos dias - de afastar em definitivo o momento em que a “máquina” desliga a consciência - que radica a força e o impacto que Não Te Movas efectivamente transmite ao leitor.
 
Publicado no Público em 2003.
 
 
Título: Não Te Movas
Autor: Margaret Mazzantini
Tradução: Simonetta Neto
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 2003
242 págs., € 15
 
 
 
 
 
 



Sem comentários: