A CINZA DA VELHICE
Há alguns anos, num serão de cavaqueira, um amigo meu,
face aos meus rasgados elogios à literatura italiana contemporânea, respondeu
que esta era, na sua opinião, sentimental e dramática em excesso. Na altura,
reagi um pouco abespinhado, afirmando que não percebia o que queria dizer com
aqueles termos e que, além disso, aquele tipo de afirmações generalistas tem o
condão, quase sempre, de mais errar do que acertar. O que é certo é que, ao ler
este romance intitulado Não Te Movas de Margaret Mazzantini,
veio-me à lembrança esta velha conversa; de facto, é difícil escrever um
romance onde o sofrimento e a morte estejam tão presentes: acidentes
rodoviários, filhos em coma, violações, abortos, mortes por cancro e por outras
causas, desagregação de relações amorosas e conjugais, velhice e mais velhice.
Margaret Mazzantini é uma recente autora italiana que, em paralelo
com uma brilhante carreira como actriz, principalmente no teatro, mas também no
cinema e na televisão, encetou uma não menos brilhante carreira como romancista
e dramaturga. Já publicou dois romances, ganhando com o primeiro, Il
catino di zinco, o Prémio Campiello de 1994, e com este que agora foi
editado em Portugal, o Prémio Strega de 2002; isto é, com as duas únicas obras
que publicou, conquistou os dois mais importantes prémios literários italianos.
Se associarmos a esta consagração, o enorme sucesso de vendas que obteve, em
particular com o segundo romance, pode considerar-se que era impossível
perspectivar um início de carreira literária mais fulgurante do que aquele que
teve.
Saliente-se ainda que a aposta da literária de
Margaret Mazzantini em Não Te Movas é arriscada: a autora pretendeu
escrever um melodrama. Ora, a literatura narrativa, mesmo tendo em conta o peso
da corrente realista, não tem uma grande tradição melodramática. Na minha
opinião, porque o melodrama assenta num frágil jogo de artifício (em que
situações inverosímeis têm que parecer verosímeis), necessitando, por isso, de
um suporte (a imagem, a música, a retórica da iluminação artificial) para que
consiga atingir os seus objectivos. Nesta perspectiva, o ascendente do efeito
mimético da arte narrativa coaduna-se dificilmente com o “puzzle” de acasos ou
com a exploração exaustiva da dimensão trágica das situações que são decisivas,
no melodrama, para atingir o clima emocional necessário para que o leitor
aceite como plausível a matéria narrada.
Assim, no caso deste romance, a própria situação
de fundo (em que o narrador, enquanto espera pelo resultado de uma intervenção
cirúrgica, realizada de urgência à sua filha, vítima de um grave acidente de
motorizada - e, portanto, sob a enorme tensão da expectativa de saber se vai
sobreviver -, “confessa” uma boa parte da sua vida amorosa e, em particular, a
sua relação atribulada e trágica com uma amante) é, objectivamente, muito pouco
plausível. Por outro lado, a recorrência constante à coincidência de factos
(por exemplo, as situações de gravidez simultânea da mulher e da amante e o
destino de todo antagónico das duas fecundações) faz com que o leitor se
interrogue sobre o seu carácter credível. Por outro lado, há, sem sombra de
dúvidas, situações narrativas mal resolvidas, tendo em consideração a definição
caracterial das personagens: saliento, por exemplo, a cena crucial da violação,
que, de certo modo, é inexplicável, ou ainda o contexto da uma última relação
sexual entre o narrador e a amante, de inegável efeito dramático, mas, ao mesmo
tempo, e de forma notória, artificioso.
Não se julgue, porém, que o reconhecimento de algumas
fragilidades narrativas de Não Te Movas o torna menos
interessante. Pelo contrário, e salvo as já referidas situações inexplicáveis,
é raro encontrar uma obra de uma autora que procure, de um modo tão intenso,
compreender o universo masculino, em particular as vertentes sempre obscuras do
seu comportamento sexual e dos seus mecanismos de afirmação do desejo. De
facto, o posicionamento de Margaret Mazzantini é o de se colocar ao lado dos
homens, tentando entender o seu teatro de fantasmagorias, em grande parte
motivado pela permanente expectativa de uma inevitável solidão, e como a sua
sexualidade e o seu desejo são ainda algumas das poucas armas com que procura
convencer-se que consegue erradicar esses fantasmas. No fundo, o homem aparece,
em Não
Te Movas, em constante projecção para a(s) figura(s) feminina(s) (mãe,
mulher, amante, filha), sendo, em si mesmo, uma espécie de buraco negro
delineado por elas.
Pode, por isso, afirmar-se que o romance de
Margaret Mazzantini parece situar-se num estádio em que já se superou o ajuste
de contas com a entidade masculina, exemplificada aqui por um narrador que
reconhece que o acaso e as opções o encaminharam para uma situação de falência
como marido, amante e pai, envolvendo-a num clima afectivo de resignada
aceitação às suas peculiares tibiezas. Nesse sentido, Não Te Movas é um romance
sobre a velhice – ou melhor, sobre o despojamento do desejo como mecanismo
preparatório para a morte – e, muito em particular, um lamento pungente sobre a
passagem do tempo: a súplica “não te movas” que dá título ao romance e que
aparece, em estilo encantatório, de forma cíclica, na narrativa (traduzida,
numa incorrecta duplicidade de critério, pela expressão “não te mexas”),
relaciona-se com essa necessidade, ansiada pelo narrador, de cristalizar num
momento “pré-catastrófico” a passagem das horas e dos dias. É nesta tão humana
obsessão de parar o escorrer dos dias - de afastar em definitivo o momento em
que a “máquina” desliga a consciência - que radica a força e o impacto que Não
Te Movas efectivamente transmite ao leitor.
Publicado no Público
em 2003.
Título: Não Te Movas
Autor: Margaret Mazzantini
Tradução: Simonetta Neto
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 2003
242 págs., € 15
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