A EFICÁCIA ASSASSINA
DO DETERMINISMO
Quem
analisar a obra de Friedrich Dürrenmatt - não só a dramaturgia, mas também a
sua produção, não menos importante, de ensaísta e ficcionista - constatará que
existe uma intenção sistemática de reduzir a existência ao valor de um jogo,
considerando que qualquer significação transcendente desta se perdeu, na actual
sociedade, no mais puro aleatório.
Em
termos dramáticos, a farsa serve de uma forma excelente este objectivo. E, no
domínio da narração, esse objectivo é também bem atingido pelo romance
policial. Não admira, por isso, que, a partir da década de cinquenta, Friedrich
Dürrenmatt tenha publicado vários títulos dentro deste género, onde pontuam não
só a novela agora traduzida, O Juiz e o Seu Carrasco, mas também A
Suspeita, A Promessa e, principalmente, a magnífica Justiça (também já traduzida).
De
facto, o mecanismo narrativo deste género assenta na coerência e na forma como
são interrelacionados os elementos da trama, remetendo para segundo plano o
critério da verosimilhança e dando, assim, às existências narradas um estatuto
clara e estritamente ficcional. Além disso, o romance policial serve a
Friedrich Dürrenmatt para fazer constatar que a justiça não passa de um exercício
de reordenamento social, cujos resultados são tão lícitos como quaisquer outros,
e onde a moral se apresenta, na esfera do privado, como um discurso de arbitrária
legitimação que necessita, ainda por cima, do crime para a sua própria formulação.
A
novela O Juiz e o Seu Carrasco torna bem evidente qual a posição do
autor sobre o crime: este é sempre resultado de um confronto de energias, de
vontades, de éticas, em suma, de visões do mundo. Num diálogo nuclear entre o
“juiz” e o “assassino”, a novela define, de forma bem explícita, quais as
“teses” em presença: o “juiz” defende que o crime é uma “estupidez porque é
impossível operar com as pessoas como se fossem peças de um xadrez” e porque a
“imperfeição humana” e o Acaso fazem com que não se possa “prever com segurança
o modo de agir de outrem”; o “assassino” considera que é precisamente “o caos
das relações humanas que torna possível cometer crimes” que podem não ser descobertos.
E, numa aposta que envolve por completo as suas existências, estas personagens
desencadeiam um confronto mortífero.
Parece
que o próprio desenrolar do enredo vem dar razão à tese do “juiz”. Porém, a
estratégia, que permite a “vitória” desta, vem, a seu modo, confirmar que há a
possibilidade de determinar o comportamento humano e prever que uma certa acção
se reflicta noutra, actuando o criminoso como um jogador de bilhar ao efectuar
uma carambola. A eventualidade do “crime perfeito” está, assim, directamente
relacionada com a hipótese de o criminoso conseguir ascender a omnisciência de
Deus - aquele que está sempre impune. Se, para o autor, já não havia argumentos
éticos que inibissem a acção criminosa, o que O Juiz e o Seu Carrasco
pretende evidenciar é que não existem também argumentos lógicos que dêem origem
a essa inibição.
Saliente-se
que esta convicção no determinismo dos efeitos - essencial na economia
narrativa desta novela - é uma característica constante de toda a obra
ficcionista de Friedrich Dürrenmatt e uma das razões porque ela parece estar tão
empenhada em hipnotizar o leitor com o fulgor da inteligência que a concebe. No
entanto, no caso de O Juiz e o Seu Carrasco, tal não sucede; de facto, a estrutura narrativa
é demasiado unívoca, a inverosimilhança da trama não está - como acontece
noutras obras do autor – oculta de forma tão hábil e certos diálogos têm um
pendor demasiado literário.
Publicado no Público em 1993.
Título: O Juiz e o Seu Carrasco
Autor: Friedrich Dürrenmatt
Tradutor: Fátima Freire de Andrade
Editor: Asa
Ano: 1993
121 págs. € 8,06
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