RITOS DE
SANGUE
Uma
primeira constatação que se pode fazer sobre Ernest Hemingway, agora que já
passaram quarenta anos da sua morte, é que, decerto, não existe nenhum outro
escritor americano que mais próximo esteja da imagem arquetípica que o
americano médio faz de si próprio. E essa identificação é tal que, como na
história do ovo e da galinha, torna-se difícil perceber até que ponto o próprio
Hemingway contribuiu de um modo decisivo para essa imagem ou, pelo contrário,
com uma invulgar intuição, se “colou” ao perfil que a sociedade americana
pretendia para um escritor. O que é certo, é que provavelmente não existe
nenhum outro escritor americano que mais influência tenha exercido no séc. XX,
uma vez que esta ultrapassou - e em muito - o estrito campo literário. De certo
modo, Hemingway está associado à matriz do comportamento civilizacional
americano, já que alguns elementos fundamentais da sua visão do mundo impregnam
a gigantesca máquina compressora de códigos e valores que é o “media”
americano.
Pode
estranhar-se, contudo, que uma obra com uma ambiência já um pouco “envelhecida”
(a boémia alcoólica do princípio do século, as guerras, as touradas, a caça e a
pesca de animais de grande porte) continue a ser lida de uma forma tão
fervorosa. Creio que as razões deste facto prendem-se com o seu inconfundível
estilo, claro e aparentemente simples, e o seu posicionamento existencial, bem
expresso em todas as suas obras, de permanente busca do modo “justo” de viver.
É evidente que esta atitude se integra numa espécie de paradigma epistemológico
e ético de um grande número de escritores da primeira metade do séc. XX. Mas
deve realçar-se a profundidade da rotura que, no contexto da produção
narrativa, este quadro paradigmático efectuou em relação à tradição romanesca
do século anterior e, em concreto, o papel da obra de Hemingway, pelo seu
equilíbrio entre autobiografia e ficção, entre “gestaltismo” e subjectividade,
entre acção e descrição, associado às suas preocupações com a estrutura
romanesca e com a já citada obsessão estilística, para o “impor” como dominante
na criação narrativa do período anterior à II Guerra Mundial.
Além disso,
esse ambicionado modo “justo” de viver de Hemingway tinha - utilizando a
expressão conhecida do séc. XVIII - três “luzes” orientadoras e que, a seu
modo, procuravam responder a inquietações genuínas do período em questão,
dilacerado por modelos sociais e políticos marcadamente autocráticos e de sinal
oposto e por uma industrialização que avançava de forma galopante pela face da
Terra: a liberdade individual, a inevitabilidade do compromisso solidário com o
seu semelhante e a necessidade de permanente reajustar o complexo lugar do
homem no reino da Natureza. A releitura das obras maiores de Hemingway (O
Adeus Às Armas, Death in the Afternoon, As
Verdes Colinas de África, Por Quem Os Sinos Dobram, Na
Outra Margem, Entre As Árvores e O Velho e o Mar) comprova como estas
questões determinaram toda a sua existência; ora, se considerarmos que estas
inquietações se mantêm plenas de actualidade, pode perceber-se melhor a
popularidade que este autor continua a ter, mesmo entre as mais recentes
gerações.
Por alturas
do centenário do nascimento de Hemingway, o seu filho Patrick resolveu
publicar, em versão reduzida, um romance que seu pai tinha deixado em “borrão”
num amplo manuscrito (com mais de oitocentas páginas), e cuja tradução foi
agora editada no nosso país com o título de Verdade Ao Amanhecer. Os
“cortes” efectuados provocaram, como é natural, uma “manipulação” do original
(assumida por Patrick Hemingway), dando enfâse a certas personagens e situações
em detrimento de outras, o que foi muito contestado pelos especialistas
americanos da obra de Hemingway. Por outro lado, sendo conhecida a forma como o
autor trabalhava de um modo meticuloso os seus originais, reescrevendo-os em
dezenas de versões, torna-se compreensível a crítica de que o romance agora
publicado está bem distante das qualidades estilísticas que caracterizam as
restantes obras de Hemingway. Por isso mesmo, foi unânime a opinião de que Verdade
Ao Amanhecer nada veio acrescentar à sua já conhecida obra,
contestando-se, por conseguinte, a pertinência da sua publicação.
O romance -
mais assumidamente autobiográfico do que qualquer outro do autor - descreve, numa
ambiência muito próxima de As Verdes Colinas de África ou de As
Neves de Kilimanjaro, as peripécias de uma caçada ao leão que, em
finais de 1953, naquela que se viria a revelar como a derradeira viagem de
Hemingway à Africa Oriental, a sua quarta mulher, Mary Welsh, desejava
obstinadamente realizar. Pelo meio, aparecem todos os temas e situações
queridos ao autor: o louvor das cumplicidades abnegadas da camaradagem, a
paixão pelas personalidades simples mas de forte carácter, o interesse e
admiração pela dignidade do comportamento animal e pela sua adequação ao meio
natural. Por isso, um dos interesses peculiares de Verdade Ao Amanhecer está
em perceber como Hemingway reage ao clima social de uma África já bem distante
daquela que conheceu - e amou - na década de trinta: no momento em que se
passam as peripécias descritas no romance, os “Mau-Mau” já eram uma preocupação
para a sociedade colonizadora do Quénia e começavam a aparecer os primeiros
sinais dos movimentos independentistas africanos...
No
essencial, Verdade ao Amanhecer retoma a preocupação fundamental de
Hemingway das obras da última fase da sua vida (como é o caso, por exemplo, de O
Velho e o Mar): o papel da violência como suporte determinante da sobrevivência
do homem. Para Hemingway, não existe vida justa e digna sem morte; e é essa a
contradição existencial mais dilacerante do homem: a guerra, a caça e a pesca
são, no fundo, ritos ancestrais de sangue que a condição humana, mergulhada
numa inóspita e brutal Natureza, é obrigada a ter para conseguir um equilíbrio
sempre precário com o seu semelhante e a própria Natureza. Daí que a caça nunca
apareça na obra de Hemingway como um mero desporto, mas sim como um “acto”,
envolto numa ética de profundo respeito pela vítima, com que o homem contribui
para “refazer” o seu lugar e garantir a continuidade da Vida.
Talvez seja
difícil encontrar, em Verdade Ao Amanhecer, o
Hemingway-escritor que o leitor conhece de outros romances. Porém, o leitor não
se iluda: por estas páginas transparece, e de forma bem nítida, a personalidade
fascinante e contraditória de um homem que nunca baixou os braços na sua busca
de assumir coerentemente o seu lugar no mundo. E que, quando percebeu que não
tinha condições para a continuar, decidiu procurar, também coerentemente, na
ponta de um cano de uma espingarda, a forma de garantir que os outros a
prossigam sem o fardo de uma vida já inútil.
Publicado
no Público em 2000.
Título: Verdade Ao Amanhecer
Autor: Ernest Hemingway
Tradução: José Lima
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 2000
350 págs., €
18,90
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