segunda-feira, 16 de novembro de 2015

ERNEST HEMINGWAY 1

 
 
 
 
 

RITOS DE SANGUE

 

Uma primeira constatação que se pode fazer sobre Ernest Hemingway, agora que já passaram quarenta anos da sua morte, é que, decerto, não existe nenhum outro escritor americano que mais próximo esteja da imagem arquetípica que o americano médio faz de si próprio. E essa identificação é tal que, como na história do ovo e da galinha, torna-se difícil perceber até que ponto o próprio Hemingway contribuiu de um modo decisivo para essa imagem ou, pelo contrário, com uma invulgar intuição, se “colou” ao perfil que a sociedade americana pretendia para um escritor. O que é certo, é que provavelmente não existe nenhum outro escritor americano que mais influência tenha exercido no séc. XX, uma vez que esta ultrapassou - e em muito - o estrito campo literário. De certo modo, Hemingway está associado à matriz do comportamento civilizacional americano, já que alguns elementos fundamentais da sua visão do mundo impregnam a gigantesca máquina compressora de códigos e valores que é o “media” americano.

 
Pode estranhar-se, contudo, que uma obra com uma ambiência já um pouco “envelhecida” (a boémia alcoólica do princípio do século, as guerras, as touradas, a caça e a pesca de animais de grande porte) continue a ser lida de uma forma tão fervorosa. Creio que as razões deste facto prendem-se com o seu inconfundível estilo, claro e aparentemente simples, e o seu posicionamento existencial, bem expresso em todas as suas obras, de permanente busca do modo “justo” de viver. É evidente que esta atitude se integra numa espécie de paradigma epistemológico e ético de um grande número de escritores da primeira metade do séc. XX. Mas deve realçar-se a profundidade da rotura que, no contexto da produção narrativa, este quadro paradigmático efectuou em relação à tradição romanesca do século anterior e, em concreto, o papel da obra de Hemingway, pelo seu equilíbrio entre autobiografia e ficção, entre “gestaltismo” e subjectividade, entre acção e descrição, associado às suas preocupações com a estrutura romanesca e com a já citada obsessão estilística, para o “impor” como dominante na criação narrativa do período anterior à II Guerra Mundial.

 
Além disso, esse ambicionado modo “justo” de viver de Hemingway tinha - utilizando a expressão conhecida do séc. XVIII - três “luzes” orientadoras e que, a seu modo, procuravam responder a inquietações genuínas do período em questão, dilacerado por modelos sociais e políticos marcadamente autocráticos e de sinal oposto e por uma industrialização que avançava de forma galopante pela face da Terra: a liberdade individual, a inevitabilidade do compromisso solidário com o seu semelhante e a necessidade de permanente reajustar o complexo lugar do homem no reino da Natureza. A releitura das obras maiores de Hemingway (O Adeus Às Armas, Death in the Afternoon, As Verdes Colinas de África, Por Quem Os Sinos Dobram, Na Outra Margem, Entre As Árvores e O Velho e o Mar) comprova como estas questões determinaram toda a sua existência; ora, se considerarmos que estas inquietações se mantêm plenas de actualidade, pode perceber-se melhor a popularidade que este autor continua a ter, mesmo entre as mais recentes gerações.

 
Por alturas do centenário do nascimento de Hemingway, o seu filho Patrick resolveu publicar, em versão reduzida, um romance que seu pai tinha deixado em “borrão” num amplo manuscrito (com mais de oitocentas páginas), e cuja tradução foi agora editada no nosso país com o título de Verdade Ao Amanhecer. Os “cortes” efectuados provocaram, como é natural, uma “manipulação” do original (assumida por Patrick Hemingway), dando enfâse a certas personagens e situações em detrimento de outras, o que foi muito contestado pelos especialistas americanos da obra de Hemingway. Por outro lado, sendo conhecida a forma como o autor trabalhava de um modo meticuloso os seus originais, reescrevendo-os em dezenas de versões, torna-se compreensível a crítica de que o romance agora publicado está bem distante das qualidades estilísticas que caracterizam as restantes obras de Hemingway. Por isso mesmo, foi unânime a opinião de que Verdade Ao Amanhecer nada veio acrescentar à sua já conhecida obra, contestando-se, por conseguinte, a pertinência da sua publicação.

 
O romance - mais assumidamente autobiográfico do que qualquer outro do autor - descreve, numa ambiência muito próxima de As Verdes Colinas de África ou de As Neves de Kilimanjaro, as peripécias de uma caçada ao leão que, em finais de 1953, naquela que se viria a revelar como a derradeira viagem de Hemingway à Africa Oriental, a sua quarta mulher, Mary Welsh, desejava obstinadamente realizar. Pelo meio, aparecem todos os temas e situações queridos ao autor: o louvor das cumplicidades abnegadas da camaradagem, a paixão pelas personalidades simples mas de forte carácter, o interesse e admiração pela dignidade do comportamento animal e pela sua adequação ao meio natural. Por isso, um dos interesses peculiares de Verdade Ao Amanhecer está em perceber como Hemingway reage ao clima social de uma África já bem distante daquela que conheceu - e amou - na década de trinta: no momento em que se passam as peripécias descritas no romance, os “Mau-Mau” já eram uma preocupação para a sociedade colonizadora do Quénia e começavam a aparecer os primeiros sinais dos movimentos independentistas africanos...

 
No essencial, Verdade ao Amanhecer retoma a preocupação fundamental de Hemingway das obras da última fase da sua vida (como é o caso, por exemplo, de O Velho e o Mar): o papel da violência como suporte determinante da sobrevivência do homem. Para Hemingway, não existe vida justa e digna sem morte; e é essa a contradição existencial mais dilacerante do homem: a guerra, a caça e a pesca são, no fundo, ritos ancestrais de sangue que a condição humana, mergulhada numa inóspita e brutal Natureza, é obrigada a ter para conseguir um equilíbrio sempre precário com o seu semelhante e a própria Natureza. Daí que a caça nunca apareça na obra de Hemingway como um mero desporto, mas sim como um “acto”, envolto numa ética de profundo respeito pela vítima, com que o homem contribui para “refazer” o seu lugar e garantir a continuidade da Vida.

 
Talvez seja difícil encontrar, em Verdade Ao Amanhecer, o Hemingway-escritor que o leitor conhece de outros romances. Porém, o leitor não se iluda: por estas páginas transparece, e de forma bem nítida, a personalidade fascinante e contraditória de um homem que nunca baixou os braços na sua busca de assumir coerentemente o seu lugar no mundo. E que, quando percebeu que não tinha condições para a continuar, decidiu procurar, também coerentemente, na ponta de um cano de uma espingarda, a forma de garantir que os outros a prossigam sem o fardo de uma vida já inútil.

 
Publicado no Público em 2000.

 

 

Título: Verdade Ao Amanhecer
Autor: Ernest Hemingway
Tradução: José Lima
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 2000
350 págs., € 18,90

 
 
 



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