segunda-feira, 16 de novembro de 2015

MARY RENAULT

 
 
 
 
 
A NECESSIDADE DE HERÓIS
 
A proliferação nas últimas décadas do chamado romance histórico, gozando de uma enorme receptividade em quase todos os países europeus, é bem sintomática, em certa perspectiva, das actuais dificuldades de afirmação estética do realismo. A pretensão mais óbvia do romance histórico - recriar uma realidade que o tempo dissolveu, tentando desvendá-la como “vivida” – transformou-o no grande bastião do romance realista, sendo, por isso, desenvolvido, salvo algumas excepções, pelos narradores esteticamente mais conservadores. Repare-se, por exemplo, que raros são os romances históricos que não terminam com um apêndice bibliográfico ou documental em que se procura fundamentar a veracidade da encenação e da trama.
 
A obra de Mary Renault - uma escritora inglesa, radicada na África do Sul, que, na década de cinquenta, inflectiu a sua produção literária, passando a dedica-se ao romance histórico - reflecte bem esta constatação. O romance agora traduzido, O Jovem Persa, segundo volume de una trilogia sobre Alexandre, a que a autora se dedicou no final da sua carreira literária, é composto pelas “memórias” de um eunuco persa que, enquanto adolescente, foi o “eromenos” de Dario e, principalmente, do Macedónio, podendo, assim, testemunhar, de uma forma íntima, o glorioso apogeu e morte deste. A estrutura narrativa do romance, bem convencional e linear, confina-se a percorrer, passo a passo, os excepcionais acontecimentos da existência desta figura lendária.
 
O romance de Mary Renault partilha também do fascínio que, de uma forma duradoira, o período clássico da civilização ocidental tem provocado na produção literária. Esta “idade de ouro”, dada a primordialidade dos tempos, parece que revela todos os conflitos numa solução mítica que transforma as relações do homem consigo mesmo, com o outro e com a natureza em essenciais evidências. O seu conhecimento transmite a convicção ilusória, bem nítida em O Jovem Persa, de que nada existe de novo no Saber, que este apenas se vai desfigurando e configurando, e, por conseguinte, que a integração desse conhecimento na existência presente permite que se encare com serenidade a inevitabilidade da morte.
 
A figura de Alexandre aparece em O Jovem Persa como conseguindo cumprir sempre com justeza o seu destino, cristalizando-se assim no perfil intocável do herói. E, por isso, este romance procura responder à necessidade, também duradoira, de crer na possibilidade de existirem entidades que consigam talhar no barro do tempo uma luminosa imortalidade. Mas esta pretensão apaziguadora, de descortinar sentidos que justifiquem a existência face à dissipação dos dias, é a mais bela fragilidade de O Jovem Persa. Porque, se alguma caracterização pode definir mais lapidarmente este romance, é a de que é uma longa afirmação amorosa, tecida de forma laboriosa, e que esta torna evidente a sua mais angustiante (e contraditória) “verdade”: a de que não existe heroicidade exterior ao olhar e ao discurso amoroso.
 
Refira-se, por fim, que O Jovem Persa, sem ser uma obra inovadora ou determinante na literatura contemporânea, é uma leitura aprazível, porque construída num lirismo contido e subtil, esquivando-se constantemente a uma epicidade fácil e mantendo-se numa tonalidade intimista e passional que provoca uma envolvente empatia pelas personagens e situações dramáticas,
 
Publicado no Público em 1991.
 
 
Titulo: O Jovem Persa
Autor: Mary Renault
Tradução e posfácio: Mário Avelar
Editor: Assírio & Alvim
Ano: 1991
382 págs. , € 19,80
 
 
 
 



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