A NECESSIDADE DE HERÓIS
A
proliferação nas últimas décadas do chamado romance histórico, gozando de uma
enorme receptividade em quase todos os países europeus, é bem sintomática, em
certa perspectiva, das actuais dificuldades de afirmação estética do realismo.
A pretensão mais óbvia do romance histórico - recriar uma realidade que o tempo
dissolveu, tentando desvendá-la como “vivida” – transformou-o no grande bastião
do romance realista, sendo, por isso, desenvolvido, salvo algumas excepções,
pelos narradores esteticamente mais conservadores. Repare-se, por exemplo, que
raros são os romances históricos que não terminam com um apêndice bibliográfico
ou documental em que se procura fundamentar a veracidade da encenação e da
trama.
A
obra de Mary Renault - uma escritora inglesa, radicada na África do Sul, que,
na década de cinquenta, inflectiu a sua produção literária, passando a dedica-se
ao romance histórico - reflecte bem esta constatação. O romance agora
traduzido, O Jovem Persa, segundo volume de una trilogia sobre Alexandre,
a que a autora se dedicou no final da sua carreira literária, é composto pelas
“memórias” de um eunuco persa que, enquanto adolescente, foi o “eromenos” de Dario
e, principalmente, do Macedónio, podendo, assim, testemunhar, de uma forma íntima,
o glorioso apogeu e morte deste. A estrutura narrativa do romance, bem convencional
e linear, confina-se a percorrer, passo a passo, os excepcionais acontecimentos
da existência desta figura lendária.
O
romance de Mary Renault partilha também do fascínio que, de uma forma duradoira,
o período clássico da civilização ocidental tem provocado na produção literária.
Esta “idade de ouro”, dada a primordialidade dos tempos, parece que revela
todos os conflitos numa solução mítica que transforma as relações do homem
consigo mesmo, com o outro e com a natureza em essenciais evidências. O seu
conhecimento transmite a convicção ilusória, bem nítida em O Jovem Persa, de que nada
existe de novo no Saber, que este apenas se vai desfigurando e configurando, e,
por conseguinte, que a integração desse conhecimento na existência presente
permite que se encare com serenidade a inevitabilidade da morte.
A figura
de Alexandre aparece em O Jovem Persa como conseguindo cumprir
sempre com justeza o seu destino, cristalizando-se assim no perfil intocável do
herói. E, por isso, este romance procura responder à necessidade, também
duradoira, de crer na possibilidade de existirem entidades que consigam talhar
no barro do tempo uma luminosa imortalidade. Mas esta pretensão apaziguadora,
de descortinar sentidos que justifiquem a existência face à dissipação dos
dias, é a mais bela fragilidade de O Jovem Persa. Porque, se alguma
caracterização pode definir mais lapidarmente este romance, é a de que é uma
longa afirmação amorosa, tecida de forma laboriosa, e que esta torna evidente a
sua mais angustiante (e contraditória) “verdade”: a de que não existe heroicidade
exterior ao olhar e ao discurso amoroso.
Refira-se,
por fim, que O Jovem Persa, sem ser uma obra inovadora ou determinante na
literatura contemporânea, é uma leitura aprazível, porque construída num
lirismo contido e subtil, esquivando-se constantemente a uma epicidade fácil e
mantendo-se numa tonalidade intimista e passional que provoca uma envolvente empatia
pelas personagens e situações dramáticas,
Publicado no Público em 1991.
Titulo: O Jovem Persa
Autor: Mary Renault
Tradução e posfácio: Mário Avelar
Editor: Assírio & Alvim
Ano: 1991
382 págs. , € 19,80
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