terça-feira, 3 de novembro de 2015

ANTHONY POWELL


 
 
O AFECTO COMO SACRIFÍCIO
 
As obras de um George Orwell, de um Evelyn Waugh, ou até mesmo de um Graham Greene e de um Christopher lsherwood exemplificam bem, a seu modo, a ideia, mais ou menos consensual, com que se pretende caracterizar a produção narrativa da geração que começou a publicar na década de trinta em Inglaterra: a de que procurou conciliar o excepcional trabalho de renovação das estruturas formais da geração anterior com uma maior preocupação de intervenção e de sátira social. É certo que, posteriormente, a ficção da maioria destes autores orientou-se no sentido de um maior aprofundamento da análise psicológica e dos comportamentos, fugindo à excessiva tipificação das personagens. No entanto, este processo de “reaproximação” das estruturas narrativas ao modelo de efabulação novecentista, que estes autores efectuaram desde as suas primeiras obras, vai-se impor como paradigma do romance britânico até, pelo menos, aos anos sessenta.
 
Anthony Powell, de quem foi agora traduzido o romance O Rei Pescador, é, entre as primeiras figuras desta geração, o menos divulgado fora da Grã-Bretanha. Isto deve-se, provavelmente, a dois factores principais: primeiro, porque, de todos os autores referidos, é aquele que, em particular nas obras iniciais, mais “colado” ficou ao modelo diegético do “realismo clássico”, parecendo, por isso, ser o menos inovador; segundo, porque a sua “coroa de glória” é uma gigantesca obra, intitulada A Dance to the Music of Time, iniciada em 1951 e concluída em 1975, contituída por quatro ciclos de três romances, que, como é natural, “assustou” os editores estrangeiros. Este vastíssimo fresco, por muitos considerado como um dos projectos narrativos mais ambiciosos do pós-guerra inglês, descreve, reflectindo na sua abordagem uma acentuada influência de Proust e Tchekov, o clima social, entre as duas guerras mundiais, marcado entre os valores de uma aristocracia decrépita e um certo arrivismo burguês.
 
O Rei Pescador, um romance já posterior a A Dance to the Music of Time, situa a sua acção num cruzeiro que um conjunto de personagens, mais ou menos conhecidas entre si, efectua pela costa da Escócia. No centro das suas atenções está um casal invulgar, constituído por um fotógrafo, com uma paralisia profunda e de personalidade complexa e misantrópica, e uma belíssima bailarina que abdicou de uma carreira promissora para se dedicar ao seu amado: de facto, todos pressentem que vão assistir ao desfecho doloroso desta relação, tanto mais que se encontra também embarcado um obstinado apaixonado da bailarina.
 
Parece, portanto, que toda a ambiência de O Rei Pescador se situa num registo de “coscuvilhice” mundana - e este é, diga-se de passagem, um dos traços irónicos de Anthony Powell. Mas este registo serve em particular ao autor para evidenciar a sua convicção de que a desordem das existências, mesmo podendo ser trágica, nada tem de muito violento.
 
Por isso, mais importante do que a trama deste romance, é a caracterização da “atitude” das personagens perante a acção. Assim, uma rápida tipificação das personagens de O Rei Pescador permite dividi-las em dois grupos: as que “vivem”, isto é, as que estão possessas pelo turbilhão dos afectos por necessidade de “sarar” as suas “feridas” caracteriais ou físicas, e as que, resignadas a uma adquirida normalidade das suas vidas, apenas “observam”. Porém, a análise do comportamento de qualquer dos grupos permite chegar à seguinte constatação: a intensidade da circulação afectiva provoca sempre o sacrifício da dimensão criativa da existência, transformando-a numa gratuita desordem. No fundo, esta constatação só vem confirmar a eficácia da caracterização efectuada pelos grandes arquétipos literários (no caso vertente deste romance, como se pode perceber pelo título, os do ciclo arturiano) e que nada se transforma, ao longo dos séculos, na condição humana, parecendo que esta, de forma ininterrupta, apenas subscreve o princípio inscrito no fragmento de Heraclito: “o carácter é o destino”.
 
Esta subvalorização dos afectos, associada a constatação da sua inevitabilidade, permite compreender por que é que este romancista, possuidor de uma sólida técnica narrativa, sempre perfilhou, ao longo de uma extensa carreira literária, uma estética baseada numa descrição realista e distanciada do cenário e da acção, e, por fim, decerto, por que é que o nome de Anthony Powell nunca obteve o estatuto de popularidade comum aos “pares” da sua geração.
 
Publicado no Público em 1993.
 
Título: O Rei Pescador
Autor: Anthony Powell
Tradução: José Vieira de Lima
Revisão: Fernando Cunha Rebelo
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1993
273 págs, 15,65 €.
 
 




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