O AFECTO COMO SACRIFÍCIO
As
obras de um George Orwell, de um Evelyn Waugh, ou até mesmo de um Graham Greene
e de um Christopher lsherwood exemplificam bem, a seu modo, a ideia, mais ou
menos consensual, com que se pretende caracterizar a produção narrativa da geração
que começou a publicar na década de trinta em Inglaterra: a de que procurou
conciliar o excepcional trabalho de renovação das estruturas formais da geração
anterior com uma maior preocupação de intervenção e de sátira social. É certo que,
posteriormente, a ficção da maioria destes autores orientou-se no sentido de um
maior aprofundamento da análise psicológica e dos comportamentos, fugindo à
excessiva tipificação das personagens. No entanto, este processo de “reaproximação”
das estruturas narrativas ao modelo de efabulação novecentista, que estes
autores efectuaram desde as suas primeiras obras, vai-se impor como paradigma
do romance britânico até, pelo menos, aos anos sessenta.
Anthony
Powell, de quem foi agora traduzido o romance O Rei Pescador, é, entre
as primeiras figuras desta geração, o menos divulgado fora da Grã-Bretanha.
Isto deve-se, provavelmente, a dois factores principais: primeiro, porque, de
todos os autores referidos, é aquele que, em particular nas obras iniciais,
mais “colado” ficou ao modelo diegético do “realismo clássico”, parecendo, por
isso, ser o menos inovador; segundo, porque a sua “coroa de glória” é uma
gigantesca obra, intitulada A Dance to the Music of Time,
iniciada em 1951 e concluída em 1975, contituída por quatro ciclos de três
romances, que, como é natural, “assustou” os editores estrangeiros. Este vastíssimo
fresco, por muitos considerado como um dos projectos narrativos mais ambiciosos
do pós-guerra inglês, descreve, reflectindo na sua abordagem uma acentuada
influência de Proust e Tchekov, o clima social, entre as duas guerras mundiais,
marcado entre os valores de uma aristocracia decrépita e um certo arrivismo
burguês.
O Rei
Pescador, um romance já posterior a A
Dance to the Music of Time, situa a sua acção num cruzeiro que um
conjunto de personagens, mais ou menos conhecidas entre si, efectua pela costa
da Escócia. No centro das suas atenções está um casal invulgar, constituído por
um fotógrafo, com uma paralisia profunda e de personalidade complexa e misantrópica,
e uma belíssima bailarina que abdicou de uma carreira promissora para se dedicar
ao seu amado: de facto, todos pressentem que vão assistir ao desfecho doloroso
desta relação, tanto mais que se encontra também embarcado um obstinado
apaixonado da bailarina.
Parece,
portanto, que toda a ambiência de O Rei Pescador se situa num registo
de “coscuvilhice” mundana - e este é, diga-se de passagem, um dos traços irónicos
de Anthony Powell. Mas este registo serve em particular ao autor para
evidenciar a sua convicção de que a desordem das existências, mesmo podendo ser
trágica, nada tem de muito violento.
Por
isso, mais importante do que a trama deste romance, é a caracterização da
“atitude” das personagens perante a acção. Assim, uma rápida tipificação das
personagens de O Rei Pescador permite dividi-las em dois grupos: as que
“vivem”, isto é, as que estão possessas pelo turbilhão dos afectos por
necessidade de “sarar” as suas “feridas” caracteriais ou físicas, e as que,
resignadas a uma adquirida normalidade das suas vidas, apenas “observam”. Porém,
a análise do comportamento de qualquer dos grupos permite chegar à seguinte constatação:
a intensidade da circulação afectiva provoca sempre o sacrifício da dimensão
criativa da existência, transformando-a numa gratuita desordem. No fundo, esta
constatação só vem confirmar a eficácia da caracterização efectuada pelos
grandes arquétipos literários (no caso vertente deste romance, como se pode
perceber pelo título, os do ciclo arturiano) e que nada se transforma, ao longo
dos séculos, na condição humana, parecendo que esta, de forma ininterrupta,
apenas subscreve o princípio inscrito no fragmento de Heraclito: “o carácter é
o destino”.
Esta
subvalorização dos afectos, associada a constatação da sua inevitabilidade, permite
compreender por que é que este romancista, possuidor de uma sólida técnica
narrativa, sempre perfilhou, ao longo de uma extensa carreira literária, uma
estética baseada numa descrição realista e distanciada do cenário e da acção,
e, por fim, decerto, por que é que o nome de Anthony Powell nunca obteve o
estatuto de popularidade comum aos “pares” da sua geração.
Publicado no Público em 1993.
Título: O Rei Pescador
Autor: Anthony Powell
Tradução: José Vieira de Lima
Revisão: Fernando Cunha Rebelo
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1993
273 págs, 15,65 €.
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